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de Janeiro de 1902
«(…)
Perdoai-me, padre, porque pequei. E que pecados tens? Guardo-me bem de dizer
que não tenho nenhuns, já sei que é soberba presumirmos perfeição. Àfalta de
melhor, repito o mesmo de todas as sextas-feiras desde o anúncio do meu noivado:
pecado de desobediência em pensamento. A penitência não tem resultado? Não.
Continuo a não querer casar com aquele velho de barbas, a Paca disse... O que é
que disse a Paca? Não posso entregá-la, iriam despedi-la, o que para mim seria
pior que a morte. Não posso dizer que a Paca tem vindo a avisar-me
cuidadosamente que o Seabra se deitará na minha cama em ceroulas com uma racha
na frente e atilhos nos tornozelos e, a cheirar a elixir, quererá beijar-me,
quem sabe na boca. A Paca disse que eu devo obedecer aos meus tios, fazer o que
me mandam, casar de boa vontade, mas eu só quero brincar, tocar piano e
aprender o meu catecismo.
Sinto-me
miserável com esta mentira mesquinha, mas o padre Rocha mostra-se agradado com
a aplicação da sua aluna. É natural, minha filha. Tens apenas doze anos.
Contudo, deves estar consciente dos teus deveres. E olha que o teu noivo não é
tão velho, mas um rapaz na força da vida, mal passou os quarenta anos. Sinto-me
morrer. Quarenta anos! E não é velho? Mais algum pecado, minha filha? Bom, às
vezes digo mentiras, murmuro eu atrás dos buraquinhos do confessionário,
tentando repor alguma decência perante Deus, que tudo sabe. Mentir é grave.
Muito grave. A mentira é fonte de muitos males. E dá-me a absolvição em latim e
manda-me rezar dez Padre-Nossos, dez Avé-Marias e dez Glórias. Penitência pesada,
que me leva a concluir que não querer o Seabra na minha cama é um terrível
pecado. Tão terrível como o pecado da carne, contra o qual venho sendo alertada
desde os sete anos? Mesmo sem saber bem o que isto é, compreendo confusamente
que há uma relação e uma contradição.
Saio
da capela totalmente baralhada. Estou distraída na aula da dona Virgínia. Ela
bate com a varinha no piano, não quero mãos, quero asas, mas hoje eu tenho
pedras, coitado do Beethoven, que sorte ele ser surdo, não poderá ouvir o que
lhe estou a fazer à sonata. Tem que saber, ao menos, duas sonatas completas.
Uma senhora casada deverá entreter as suas visitas e já que a menina não tem
voz para cantar, por amor de Deus, Camilla!, ao menos toque aceitavelmente duas
sonatas do mestre e todas as valsas de Chopin. É o mínimo que se exige a uma
senhora bem educada. Alguma vez saberei ser uma senhora, saberei ser bem educada?
Sinto-me um fracasso. Quero a Paca. Só ela consegue dizer-me as palavras
certas, fazer-me sentir uma rainha, uma fada, uma deusa, só ela penetra e
enfeita o mundo maravilhoso da minha adolescência nascente, só ela me entende,
só ela me ama.
O
senhor Rudolfo ensina-me a matemática, a gramática, história e a geografia. O
padre Rocha as ciências e o catecismo. A tia Joséphine, o francês e a etiqueta.
Agora estou a receber à pressa umas noções de prendas domésticas e com isto se
completa a minha educação. A tia Joséphine já me avisou que depois de casada
irei frequentar, só de manhã, o colégio das irmãs Doroteias, que funciona em
Lisboa no Convento das Inglesinhas, ao Quelhas. Aí aprenderei coisas novas,
como a pintura, os lavores femininos, prometem-me até um pouco de literatura
com que possa fazer conversa espirituosa num salão. Pensam meus bons tios e
provavelmente o meu douto marido que isto é tudo o que uma senhora deve saber. Mas
a Paca considera que por baixo de uma senhora tem que haver uma mulher. Por
isso, com uma cumplicidade só nossa, ensina-me a vida». In Rosa Lobato Faria, Os Três
Casamentos de Camila S., Edições Asa, Porto, 3ª Edição, 1997/1999, ISBN
972-41-1904-1.
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