Leicester, Novembro
de 1863
«(…)
A mulher adiantou um passo e depois outro. A seguir colocou a mão na bolsinha
de seda que trazia pendurada no punho e tirou uns óculos. As lentes deveriam
ter acentuado o seu ar severo, mas produziram o efeito contrário, suavizaram o seu
olhar. Robert a tinha julgado mal. A mulher não apertava os olhos com desdém,
entreabria-os para ver melhor. Não era severidade o que via em seu olhar a não
ser algo muito diferente, algo que não conseguia identificar de tudo. Ela tomou
um cavalo negro do tabuleiro e o virou na mão uma e outra vez. Robert não via
nada na peça que merecesse tanta atenção. Era de madeira sólida, sem nada
especial. Entretanto, ela a estudava com olhos grandes e luminosos. Logo,
inexplicavelmente, levou-a aos lábios e a beijou. Robert olhou-a petrificado.
Quase tinha a sensação de interromper um encontro amoroso entre uma mulher e
seu amante. Aquela mulher tinha segredos e não queria compartilhá-los. A porta
da sala voltou a ranger de novo.
A mulher abriu muito os olhos como se estivesse com medo.
Olhou frenética ao seu redor e lançou-se para o sofá; na pressa por
esconder-se, aterrou no chão a dois pés de distância de Robert. Não o viu nem
sequer então. Fez-se uma bola, envolvendo o vestido ao redor do seu corpo por
trás da barreira do sofá. A sua respiração era ofegante e superficial. Menos
mal que Robert tinha movido um pouco o sofá ou a mulher jamais teria conseguido
esconder atrás dele a ela e ao vestido! Seguia apertando o cavalo na mão;
empurrou-o com violência debaixo do sofá. Nessa ocasião ouviram-se passos
pesados na estadia. Minnie?, chamou uma voz de homem. Senhorita Pursling? Está
aqui? Ela enrugou o nariz e apertou-se contra a parede. Não respondeu. Uau!,disse
outra voz que Robert não reconheceu. Uma voz jovem e meio pastosa pela bebida.
Não invejo a essa mulher. Não fale mal da minha quase prometida, respondeu a
primeira voz. Sabe que é perfeita para mim. Essa ratinha tímida? Cuidará bem de
casa. Se ocupará do meu conforto. Encarregar-se-á dos meninos e não se queixará
das minhas amantes, se ouviu um ranger de dobradiças, o som inconfundível de
alguém que abria uma das portas de cristal que protegiam as estantes de livros.
O que faz, Gardley?, perguntou o homem bêbado. A procura entre
os volumes em alemão? Não acredito que caiba aí, terminou com uma gargalhada. Gardley.
Podia ser o ancião senhor Gardley, dono de uma destilaria, mas a voz soava
jovem, assim devia ser o senhor Gardley filho. Robert tinha-o visto à
distância: um indivíduo apagado de estatura média, cabelo castanho e traços que
lhe recordavam vagamente os de cinco pessoas mais. Ao contrário, dizia o
Gardley jovem. Acredito que caberia muito bem. No que se refere a esposas, a
senhorita Pursling será igual a esses livros. Quando queira lê-la, ela estará
aí. Quando não, esperará pacientemente, no mesmo lugar onde a deixei. Será uma
esposa cómoda para mim, Ames. Além disso, a minha mãe aprova. Robert não
acreditava conhecer Ames. Encolheu os ombros e olhou a que supunha ser a
senhorita Pursling para ver como reagia a essa revelação. Ela não se mostrava
nem surpreendida nem escandalizada pelos comentários pouco românticos do seu
quase prometido. Parecia mais era resignada.
Terá que se deitar com ela, sabe?, perguntou Ame. Certo. Mas,
graças a Deus, não muito frequentemente. É como um camundongo. E como todos os
ratos, é claro que chiará quando nela se enterrar. Houve um ruído surdo. O que?,
protestou Ames. Está falando de minha futura esposa. Robert pensou que
possivelmente Gardley não fosse tão mau depois de tudo. Até que o ouviu
continuar: eu sou o único que pode pensar em se enterrar nesse camundongo. A
senhorita Pursling apertou os lábios e ergueu a vista como se implorasse ao
céu. Mas dentro da biblioteca não havia céu ao que implorar. E quando ergueu a
vista e olhou através da separação das cortinas… Seu olhar encontrou-se com o
de Robert. A mulher abriu muito os olhos. Não gritou nem lançou um coice. Nem
mesmo se moveu. Simplesmente lançou-lhe um olhar terrivelmente acusador e lhe
tremeram as ventas do nariz». In Courtney Milan, A Guerra da Duquesa,
Edições ASA, 2017, ISBN 978-989-233-743-2.
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