«(…) Esta janela encantoada,
parcial, apenas indicada, libera uma luz inteira e mista que serve de
lugar-comum à representação. Ela equilibra, na outra extremidade do quadro, a
tela invisível: assim como esta, virando as costas aos espectadores, se redobra
contra o quadro que a representa e forma, pela superposição de seu reverso
visível sobre a superfície do quadro que a contém, o lugar, para nós
inacessível, onde cintila a Imagem por excelência; assim a janela, pura
abertura, instaura um espaço tão manifesto quanto o outro é oculto; tão comum
ao pintor, às personagens, aos modelos, aos espectadores quanto o outro é solitário
(pois ninguém o olha, nem mesmo o pintor). Da direita, derrama-se por uma
janela invisível o puro volume de uma luz que torna visível toda representação;
à esquerda, estende-se a superfície que encobre, do outro lado de sua textura demasiado
visível, a representação que ela contém. Inundando a cena (quero dizer, tanto a
sala quanto a tela, a sala representada na tela e a sala onde a tela está colocada),
a luz envolve as personagens e os espectadores, impelindo-os, sob o olhar do
pintor, em direcção ao lugar onde o seu pincel os vai representar. Esse lugar,
porém, nos é recusado. Olhamo-nos olhados pelo pintor e tornados visíveis aos
seus olhos pela mesma luz que no-lo faz ver. E, no momento em que nos vamos apreender
transcritos por sua mão como num espelho, deste não podemos surpreender mais
que o insípido reverso. O outro lado de um reflexo.
Ora, exactamente em face dos
espectadores, de nós mesmos, sobre a parede que constitui o fundo da sala, o
autor representou uma série de quadros; e eis que, entre todas essas telas
suspensas, uma dentre elas brilha com um clarão singular. A sua moldura é mais
larga, mais sombria que a das outras; uma fina linha branca, no entanto, a
duplica interiormente, difundindo sobre toda a sua superfície uma luz dificilmente
determinável; pois não vem de parte alguma senão de um espaço que lhe seria interior.
Nessa luz estranha aparecem duas silhuetas e, acima delas, um pouco para trás,
uma pesada cortina de púrpura. Os outros quadros só dão a ver algumas manchas
mais pálidas no limite de uma noite sem profundeza. Esse, ao contrário, abre-se
para um espaço em recuo onde formas reconhecíveis se dispõem numa claridade que
só a ele pertence. Entre todos esses elementos destinados a oferecer
representações, mas que as contestam, as recusam, as esquivam por sua posição
ou sua distância, esse é o único que funciona com toda a honestidade e que dá a
ver o que deve mostrar. A despeito de seu distanciamento, a despeito da sombra que
o envolve. Mas não é um quadro: é um espelho. Ele oferece enfim esse encantamento
do duplo, que tanto as pinturas afastadas quanto a luz do primeiro plano com a
tela irónica recusavam.
De todas as representações que o
quadro representa, ele é a única visível; mas ninguém o olha. Em pé ao lado de
sua tela, a atenção toda absorvida pelo seu modelo, o pintor não pode ver esse
espelho que brilha suavemente atrás dele. As outras personagens do quadro
estão, na maioria, voltadas também elas para o que se deve passar à frente,
para a clara invisibilidade que margeia a tela, para esse átrio de luz, onde os
seus olhares têm para ver aqueles que os vêem, e não para essa cavidade sombria
pela qual se fecha o quarto onde estão representadas. Há, com efeito, algumas
cabeças que se oferecem de perfil: nenhuma, porém, suficientemente virada para
olhar, no fundo da sala, esse espelho desolado, pequeno rectângulo brilhante
que nada mais é senão visibilidade, mas sem nenhum olhar capaz de apossar-se
dela, torná-la actual e comprazer-se no fruto, subitamente amadurecido, do seu
espectáculo.
É preciso reconhecer que essa indiferença
só se iguala à do espelho. Com efeito, este nada reflecte daquilo que se
encontra no mesmo espaço que ele: nem o pintor, que lhe volta as costas, nem as
personagens no centro da sala. Em sua clara profundidade, não é o visível que
ele fita. Na pintura holandesa, era tradição que os espelhos desempenhassem um
papel de reduplicação: repetiam o que era dado uma primeira vez no quadro, mas
no interior de um espaço irreal, modificado, estreitado, recurvo. Ali se via a
mesma coisa que na primeira instância do quadro, porém decomposta e recomposta
segundo uma outra lei. Aqui o espelho nada diz do que já foi dito. A sua
posição, entretanto, é quase central: a sua borda superior está exactamente sobre
a linha que reparte em duas a altura do quadro, ocupa sobre a parede do fundo (ao
menos sobre a parte visível desta) uma posição mediana; deveria, pois, ser atravessado
pelas mesmas linhas perspectivas que o próprio quadro; poder-se-ia esperar que
um mesmo ateliér, um mesmo pintor, uma mesma tela nele se dispusessem segundo
um espaço idêntico; poderia ser o duplo perfeito». In Michel Foucault, As Palavras e
as Coisas, 1966, Livraria Martins Fontes Editora, 1981, 2000, ISBN
853-360-997-3.
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