Carlos
Cabral
«(…) Único filho de um fidalgo
abastado da região de Ourém, Carlos Cabral nascera em finais de 1810, quando a
Beira e o Ribatejo sofriam as inclemências da terceira invasão francesa.
Surpreendidos no Buçaco e impedidos de avançar sobre Lisboa pelas fortificações
das Linhas de Torres Vedras, os soldados do enorme exército de Massena
estacionaram entre Santarém e Rio Maior, derramaram-se pelo terreno e dedicaram
os últimos meses do ano a pilhar as povoações e quintas das cercanias, enquanto
aguardavam a chegada de reforços e mantimentos (o exército de Massena não seria
reabastecido nem reforçado em condições que lhe permitissem abrir caminho para Lisboa,
e viria a retirar-se no início de Março de 1811). A insegurança era enorme,
havia quadrilhas de salteadores por todo o lado, e o pai de Carlos decidiu
avisadamente refugiar-se com a família numa pequena casa térrea, muito discreta
e pouco acessível, que possuía na serra de Aire. Foi aí que Carlos nasceu e
viveu os primeiros meses de vida.
Passado o turbilhão da guerra, a família
regressou à sua vida na planície, mas Carlos não cortou o cordão umbilical que o
ligava à serra. Na infância, os seus dias costumavam ser solitários porque os miúdos
das aldeias próximas tinham de ajudar os pais nos suores das lavouras e mais
trabalhos rurais. Quando se reuniam todos, era um nunca acabar de correr aos ninhos,
de roubar fruta nos pomares, de lutas e de banhos no rio. Mas, sem os companheiros,
Carlos entretinha-se pouco por casa e, quando não estava retido pelo padre Isidoro,
que vinha de Ourém para lhe ensinar contas, gramática e latim, escapava-se regularmente
para os contrafortes da serra. Ficava horas esquecidas com os pastores a ouvi-los
tocar instrumentos rudimentares e assobiar aos cães e ovelhas. Levava-lhes broa,
enchidos e o que pudesse roubar da cozinha, e eles retribuíam com pão duro e cascas
de laranja, às vezes, com uma laranja inteira, que naquela paisagem calcária e
semiárida, varrida pelo vento, adquiriam um sabor inigualável. Coma mais, menino
Carlos, dizia o pastor, cortando o chouriço com o seu canivete e oferecendo-lhe
uma rodela prensada entre o polegar e a lâmina enegrecida.
Deixas-me usar o teu canivete, Manuel?,
pedia Carlos, de mão estendida, trincando o chouriço. Eu não me corto. Com cuidado...,
segurando assim e torcendo no fim, demonstrava o pastor. Atire-me ali uma pedra
àquela ovelha que se está a apartar das outras. Deixou de ir à serra quando se mudou
para Coimbra, onde fez parte dos preparatórios e cursou leis na austera
Universidade. O pai entendera-se com um primo que vivia na cidade com a mulher,
para que lhe acolhesse o filho estudante, e durante anos Carlos viveu em casa
desses primos já idosos, apoquentando-lhes o sono com os seus horários desgarrados
e as suas noites de farra nos bilhares e nas ruas da baixa coimbrã. Com as solicitações
da cidade e sem o filtro purificador da serra de Aire, a sua vida mudara do dia
para a noite. Ganhara em trepidação e malícia o que perdera em bucolismo e simplicidade.
Em Coimbra, Carlos adquiriu fama de
violento. Aparecia regularmente envolvido em cenas de pancadaria e corria nos
círculos estudantis da cidade que era desagradável, ou até brutal, com as mulheres
que ganhavam a vida nas vielas e nos botequins. Insultava-as, não lhes pagava
os serviços, por vezes batia-lhes. Um dia uma dessas prostitutas apresentou
queixa contra ele. O primo idoso moveu influências, o caso foi abafado, mas a fama
ficou. Era merecida e tinha raízes antigas e profundas. Carlos nunca se
esqueceu da sua primeira relação com uma mulher, ou melhor, da sua primeira tentativa,
porque nessa ocasião, tinha ele treze anos, não chegou a consumá-la. Tudo ocorrera
com uma criada nova, a seguir à fuga da mãe e poucos meses antes de ir para Coimbra».
In
João Pedro Marques, Os Dias da Febre, Porto Editora, 2010, ISBN
978-972-004-098-5.
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