sexta-feira, 18 de agosto de 2017

Raparigas da Província. Edna O’Brien. «O único legume que se plantava era couve. Mas agora eu já falava menos em casamento. Em primeiro lugar porque ele nunca se lavava»

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«Acordei num instante e sentei-me na cama bruscamente. Só quando estou ansiosa é que acordo com facilidade; durante um minuto não percebi por que motivo o meu coração batia mais depressa do que o habitual. Depois lembrei-me. O motivo do costume. Ele não viera para casa. Ao levantar-me, fiquei um instante na beira da cama a alisar a colcha de cetim verde com a mão. Eu e a mãe tínhamo-nos esquecido de a dobrar na noite anterior. Deslizei para o chão devagar e senti o frio do linóleo na sola dos pés. Encolhi os dedos instintivamente. Eu tinha chinelos, mas a mãe queria que os poupasse para quando ia visitar as tias e os primos; também tínhamos tapetes, mas ficavam enrolados e metidos em gavetas até chegarem as visitas de Dublin, no Verão. Calcei os soquetes. Da cozinha vinha um cheiro a bacon frito, mas não me entusiasmou. Depois fui levantar a persiana. Subiu de repente e a fita ficou enrolada em volta dela. Foi uma sorte a mãe já ter ido para baixo, pois ela estava sempre a ensinar-me a levantar as persianas como deve ser, com delicadeza.
O Sol ainda não se erguera e a relva estava salpicada de boninas profundamente adormecidas. Havia orvalho por todo o lado. A erva por baixo da minha janela, a sebe em redor, o arame enferrujado da vedação, mais atrás, e os extensos campos no seu exterior, todos eram afagados por uma névoa delicada e errante. As folhas e as árvores estavam molhadas da neblina, e as árvores pareciam irreais, como se fizessem parte de um sonho. Em torno dos miosótis que despontavam dos lados da sebe viam-se auréolas de água. Água que cintilava como prata. Estava tudo sossegado, perfeitamente sereno. Das montanhas ao longe evolava-se fumo. O dia ia ser quente.
Vendo-me à janela, Bull's-Eye saiu de debaixo da sebe, sacudiu-se para expulsar a água e ergueu para mim o olhar preguiçoso e triste. Era o nosso cão pastor e pus-lhe o nome de Bull's-Eye porque os olhos dele eram às manchas brancas e pretas, como os rebuçados enlatados. Costumava dormir na casa da turfa, mas na noite passada ficou na toca de coelho por baixo da sebe. Ficava sempre lá para estar de guarda quando o papá não dormia em casa. Nem era preciso perguntar, o meu pai não viera para casa. Nesse instante Hickey chamou lá de baixo. Eu estava a despir a camisa de noite e, com ela a passar-me pela cabeça, a princípio não o ouvi. O quê? O que dizes?, perguntei, saindo para o patamar com a colcha de cetim em volta do corpo.
Safa, já estou rouco de dizer isto. Sorriu para mim e perguntou: queres um ovo branco ou castanho para o pequeno-almoço?
Pergunta-me com delicadeza, Hickey, e chama-me amorzinho. Amorzinho. Meu coração. Queridinha. Favo de mel, queres um ovo branco ou um ovo castanho para o pequeno-almoço? Um castanho, Hickey. Tenho um lindo ovinho de franga para ti, disse ele, voltando para a cozinha. Bateu com a porta. A mamã nunca conseguiu habituá-lo a fechar as portas com delicadeza. Era o nosso serviçal e eu amava-o. Para confirmar, disse-o em voz alta à Virgem Maria, que me olhava com frieza de uma moldura dourada. Amo o Hickey, disse eu. Ela não disse nada. Admirava-me que não falasse mais vezes. Uma vez falou comigo e o que disse foi muito íntimo. Aconteceu no meio da noite, quando me levantei para dizer um desejo. Todas as noites me levantava seis ou sete vezes, como um acto de penitência. Tinha medo do inferno. Sim, amo o Hickey, pensei; mas é claro que o que eu queria dizer era que gostava muito dele. Quando tinha sete ou oito anos, costumava dizer que havia de casar com ele. Dizia a toda a gente, incluindo a catequista, que íamos viver na capoeira e tínhamos ovos de borla, e leite e legumes que a mamã nos dava.
O único legume que se plantava era couve. Mas agora eu já falava menos em casamento. Em primeiro lugar porque ele nunca se lavava, exceptuando os borrifos de água da chuva que atirava para a cara à tardinha, debruçando-se sobre o barril. Tinha os dentes verdes e a última coisa que fazia à noite era urinar para uma lata de pêssego que guardava debaixo da cama. A mamã ralhava com ele. Costumava ficar acordada na cama à espera de ele vir para casa, à espera de o ouvir levantar a janela para despejar a lata de pêssego lá para fora, para o lajeado». In Edna O’Brien, Raparigas da Província, 1960, Relógio D’Água, 2010, ISBN 978-989-641-176-3.

Cortesia de RelógioD’Água/JDACT