Carlos
Cabral
«(…) O desaparecimento da mãe tivera
um impacto estranho em si. Ficara hirto e calado quando a tia Ofélia o chamara de
parte e lhe explicara, afagando-lhe o cabelo, que a mãe fora viver outra vida para
o estrangeiro. Carlos compreendeu depressa o que aquilo significava mas nunca percebeu
ao certo o que sentiu nessa ocasião. Achou que devia sentir algo e, já na cama,
à espera de adormecer, forçou-se a chorar, mas a emoção gastou-se em meia dúzia
de lágrimas, secando quase de imediato. Não era muito apegado à mãe... De toda a
maneira, a partir desse dia houve qualquer coisa, uma dimensão, uma vibração,
uma sensibilidade, enfim, qualquer coisa, que mudou dentro de si. A criada nova
viera de Moitas, uma aldeia próxima. Teria talvez dezasseis anos, um ar dócil e
assustado, e os cabelos e olhos tão claros que eram quase descoloridos. Uma tarde,
na cozinha, abraçou-a sem jeito, apertou-lhe o peito, gaguejou-lhe obscenidades
ao pescoço e tentou levantar-lhe as saias, enquanto arremetia contra as suas
ancas com o pénis rijo e aguçado de fora. Ela debatia-se, rindo de nervoso: ai menino,
largue-me! A criada ria, a velha cozinheira, que entretanto entrara, também ria,
e ao cabo de alguns minutos de luta desengonçada e burlesca Carlos desistiu.
Ofegante, saiu a correr da cozinha, derrubando um banco, sentindo-se humilhado por
aquelas duas mulheres que não paravam de rir à sua custa. Mas, se estava humilhado,
não estava vencido e jurou a si próprio que aquilo não ficaria assim. Estudou hipóteses,
antecipou cenários e um dia em que apanhou a criada de Moitas sozinha na adega,
repetiu o assédio e consumou-o. Entrou atrás dela e fechou a porta à chave. Assustada,
a rapariga ainda apagou as velas para se diluir na escuridão bafienta da adega,
mas sem resultado. Passava alguma luz pelas clarabóias e, de toda a maneira, ele
já lhe tinha agarrado firmemente um dos pulsos. Eu grito, menino, ameaçou a criada,
em voz baixa. Grita à tua vontade, não está cá ninguém, desafiou Carlos, derrubando-a
no chão de terra.
O seu ataque foi dirigido e a resistência
dela foi menor do que tinha sido dias antes, na cozinha. Tudo aconteceu muito depressa:
o corpo dela a contorcer-se debaixo do seu, um restolhar de roupas, um formigueiro
intenso e a conclusão, a disparar através de si como uma enxurrada triunfante. Mas
o prazer que sentiu ao sujeitar a criada, ao submetê-la à sua vontade, era
sobretudo mental e transcendia em muito o simples gozo de uma ejaculação. Foi esse
prazer da vitória que daí para a frente procurou em todas as mulheres que
conheceu. Quando era mais pequeno ia aos pardais com a fisga. Às vezes os pássaros
morriam logo; outras vezes ficavam moribundos, a palpitar na sua mão. Havia qualquer
coisa de vagamente evocativo desses pássaros moribundos quando sujeitava uma mulher
e a tinha na sua mão. Carlos usou a criada assiduamente e sempre do mesmo modo bestial,
sem um gesto de carinho, sem uma palavra terna, como se fosse uma presa de
guerra. Usou-a em locais esconsos e incómodos, no moinho, sob os choupos, no estábulo.
Partiu para Coimbra sem se despedir dela. Depois, quando de tempos a tempos voltava a casa, ignorava-a e fingia
que não via os seus olhos húmidos e magoados quando servia à mesa ou se cruzava
com ele, na obscuridade do corredor. As mulheres eram trocistas, dissimuladas, indignas
de confiança e nada podia dar mais prazer do que subordiná-las e quebrar-lhes o
orgulho.
Os seus primeiros anos na
universidade coincidiram com o agravamento da situação política em Portugal e com
o triunfo do miguelismo. No seguimento da morte de João VI, em Março de 1826, o
difícil equilíbrio entre absolutistas e liberais, que o falecido rei soubera preservar
apesar dos confrontos e pronunciamentos militares, rompera-se e Portugal ia resvalando
para um conflito generalizado. Assim que sentiram a causa liberal em perigo,
vários estudantes de Coimbra suspenderam os seus estudos e alistaram-se no
Batalhão Académico. Se esse impulso já se justificara após o desaparecimento de
João VI, quando algumas unidades militares se sublevaram, assumindo uma posição
claramente antiliberal, tornou-se ainda mais premente em 1828, com o regresso do
exilado Miguel ao país. Era justamente isso que os amigos de Carlos lhe procuravam
fazer sentir, enquanto ele, aparentemente alheado da gravidade da situação, se divertia,
no bilhar do Largo da Sé: se não nos mexermos, Carlos, a liberdade está perdida,
disse um dos amigos, com ansiosa insistência.
Não te esqueças que o ano passado,
o Saldanha, que era a bem dizer o único que representava o partido liberal no governo,
foi obrigado a demitir-se. Acho que estão a exagerar, considerou Carlos, enquanto
passava meticulosamente o giz pela ponta do taco. Miguel chegou há pouco e cumpriu
o que se lhe exigiu. Jurou fidelidade a dona Maria e à Carta Constitucional. Jurou,
de facto, mas não está a cumprir, está a subverter o juramento, considerou o outro,
agitado, irritado, remexendo-se na cadeira. Repara, Carlos, que logo após ter jurado
a Carta Constitucional, demitiu magistrados, mudou o governo e os chefes militares,
sublinhou um segundo amigo, rodando o taco entre os dedos enquanto aguardava, pacientemente,
a sua vez de entrar no jogo». In João Pedro Marques, Os Dias da Febre, Porto
Editora, 2010, ISBN 978-972-004-098-5.
Cortesia de PEditora/JDACT