O fim como princípio de tudo
Morre
o corpo fica a fama
«(…) Já perto da margem, engasgado
por tanta expectoração, Fernando transmite aos companheiros de viagem a ideia
de que não é capaz de chegar ao paço. Cospe as entranhas para a água escura do rio,
baba-se, suja a roupa imaculada, contorce-se, até que os suores dão razão ao paradoxo
que é a sua vida agora: em vez de arrefecer aquece. Não chego a Lisboa, mestre Gil...,
palavras desanimadas que saíram da garganta do rei quase sem som. Chegará,
senhor. Deus há-de acompanhá-lo muito para lá da cidade, compôs o mestre em palavras
de sentidos diversos. Muito para lá, dizes bem, assentiu o rei. Perguntai aqui ao
bispo Martinho onde fica o Além, que ele logo vos dirá. Não me referia a outra coisa,
senhor, que não fosse ao vosso bem-estar na Terra. Os mistérios do Céu não são comigo.
Pois não, eu sei. Por isso é que vos disse para falardes ao bispo. Amparado pelos
aios, algum ânimo permitiu ao rei sair pelo seu pé da barca, mas já não foi capaz
de galgar o degrau da carroça que o esperava e menos ainda de sentar-se no assento
que lhe deveria caber. Viera desde Almada deitado até ao cais em Cacilhas,
deitado entrara no batel, voltava a não ser capaz de se manter hirto. Mais uma vez,
desarticulado, jogou-se sobre as almofadas que o protegiam das tábuas rijas da carreta
e ali ficou tapado com a pouca vida que ainda reservava.
Mansa a noite, sossegada a cidade,
o pequeno cortejo, em vez de subir pela Porta do Mar, avançou na direcção da
Porta do Ferro, nas imediações de onde o Falcão estava, confirmando o palpite inicial
do taberneiro. Para onde irão? Quem virá ali? Na dúvida, o espreita recuou num salto
para lá da Porta do Ferro, um pouco mais acima, já quando a rua se alarga na direcção
da calçada da Sé. Quando a comitiva ultrapassou a Porta do Ferro e começou a subir
na direcção do Largo de Santo António, um misterioso vulto escondido na noite escura
espreitava com os olhos que Deus lhe deu os movimentos de tão suspeitoso
acompanhamento. O Falcão, como uma sombra, viu passar primeiro o pregoeiro,
depois um cavaleiro mais apessoado, um e outro anunciando penas para quem desobedecesse
ao pregão real. Esperou. Os arautos já pouco lhe interessavam. Tenho cá um pressentimento…
Assim que o cortejo desembocou ao
fundo da rua, o Falcão firmou o olhar na noite escura, insistiu, mas o que viu foi
gente em cima de animais em passo lento, tão desanimada que mais parecia um enterro:
é isso, é um enterro. Alguém de nome morreu! Terá sido o rei? Aos poucos, enquanto
a procissão se definia, distinguiu de entre vários cavaleiros o chanceler, por o
ter visto em outras ocasiões junto do rei, alguns cavaleiros que conhecia de vista,
dois deles seus fregueses, mestre Gil, que de vez enquanto entrava pela porta das
traseiras à procura das protegidas de Mariamem, e o bispo que há tempo lá não
entrava, mas que fora um cliente dos melhores. A razão fundamental continuava por
descobrir. Mesmo à sua frente, a pouco mais de quatro ou cinco passos, lá vinha
devagarinho o cortejo macabro, pois não lhe saía da cabeça que tudo aquilo não
era mais do que o transporte de um morto. Assim que ficou com as traseiras da
carroça no seu ângulo de visão, com vista para o bispo Martinho, reparou que junto
dele havia uma coisa embrulhada que não identificou logo: que raio de embrulho será
aquele? Na forma..., na forma parece uma pessoa! Mas porque virá alguém embrulhado?
Tê-1o-ão matado?
Para um espertalhão que de certo modo
vivia de expedientes, a dúvida desacertava os ponteiros que tinha dentro da cabeça.
Queria juntar as coisas, retirar delas algum lucro, mas tudo o que lhe vinha ao
juízo não fazia sentido. Assim, em vista de tanta perplexidade, optou por outra
análise: ora deixa-me cá ver quem vem no cortejo. Um é o chanceler, já disse. Na
frente vão dois fidalgos de preço. Os outros não contam, é arraia-miúda que
frequenta a porta da frente da taberna; dentro da carroça vai mestre Gil e o
bispo Martinho; juntando estes, mais o embrulho, o pensamento diz-me que falta razão
para tanto sigilo: será o rei o embrulhado? Dormirá? Nah! Nem morto! Alguma coisa
lhe aconteceu». In Jorge Sousa Correia, A Tentação de D. Fernando, Clube do Autor,
2017, ISBN 978-989-724-344-8.
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