«Comecemos, talvez de um modo desajeitado,
perguntando: o nosso mundo interior é uma cebola ou uma batata? A pergunta faz-nos
sorrir, é um bocado cómica, mas, se quisermos, acaba por colocar-nos perante a nossa
realidade de uma forma bastante profunda. A pergunta pode ser feita numa cozinha,
por uma criança que está a descobrir o mundo, pode ser proferida por filósofos nas
suas reflexões ou ser formulada por um mestre espiritual. O nosso mundo interior
é uma cebola ou uma batata? Nietzsche, por exemplo, dizia que tudo é interpretação,
isto é, não há um núcleo de Ser a sustentar a nossa experiência de vida, tudo são
cascas de cebola, modos de ver, perspectivas, interpretações. Para lá disso não
há mais nada. A visão cristã do mundo está certamente do lado da batata, pois defende
que, mesmo escondida por uma crosta ou por um véu, está uma realidade que é substanciosa
e vital.
A verdade é que mesmo sabendo que
a vida é uma batata, nós vivêmo-la, muitas vezes, como se fosse uma cebola. Vivemos
de opiniões, de verdades parciais e provisórias, de paixões, vivemos aparências
e modas como se a vida fosse isso. Esgotamo-nos a desfilar cascas e camadas,
sem um centro que nos dê realmente acesso ao pleno sentido. Há uma escritora
contemporânea, Susan Sontag, que diz que a nossa existência como que fica sequestrada
neste sem fim de interpretações que nos distraem da viagem essencial. Não habitamos
em nós próprios, levados por ideias, pontos de vistas, absolutizações das circunstâncias,
cascas e mais cascas. Segundo ela, o mais urgente seria apurar e aprofundar os nossos
sentidos, aprendendo a ver melhor, a sentir melhor, a escutar melhor.
Na vida espiritual também é isso
o mais importante. Simone Weil escrevia: a oração é feita de atenção. É a orientação
para Deus de toda a atenção de que a alma é capaz. Da qualidade da atenção
depende em muito a qualidade da oração. Ao iniciarmos este tempo de vida interior,
sintamos o desafio da atenção, da vigilância, que outra coisa não é que, confiadamente,
ver melhor, sentir melhor, escutar melhor o que Deus revela em nós. Deixemos a nossa
confusão de cebola. A Bíblia, que é para os crentes um autêntico manual de introdução
à aventura espiritual, oferece-nos muitos exemplos de como é necessário
reganhar esta atenção interior, para escutar Deus que nos fala. Tomemos dois
textos para a nossa reflexão: primeiro, o episódio inaugural da vocação de Moisés,
no deserto: Moisés estava a apascentar o rebanho de Jetro, seu sogro, sacerdote
de Madian. Conduziu o rebanho para além do deserto, e chegou à montanha de Deus,
ao Horeb. O anjo do Senhor apareceu-lhe numa chama de fogo, no meio da sarça.
Ele olhou e viu, e eis que a sarça ardia no fogo mas não era devorada. Moisés
disse: vou adentrar-me mais para ver melhor esta grande visão: por que razão não
se consome a sarça? O Senhor viu que ele se adentrava para ver; e Deus chamou-o
do meio da sarça: Moisés! Moisés! Ele disse: eis-me aqui!
Reparemos no verbo que Moisés utiliza:
vou adentrar-me. Quer dizer, vou avizinhar-me o mais possível, vou colocar-me dentro,
vou como que mergulhar no que está diante de mim. Quando ele deixou de satisfazer-se
com as visões parciais, distanciadas e nebulosas, quando desejou com todas as forças
uma certeza clara para as perguntas do seu coração, diz-nos o livro do Êxodo,
que o Senhor viu-o..., e chamou-o. O Senhor está pronto a chamar-nos. Adentremo-nos.
Deixemos uma espiritualidade vaga, onde somos espectadores dispersos. Busquemos
Aquele que confirma, Aquele que dá consistência ao nosso desejo». In
José Tolentino Mendonça, O Tesouro Escondido, 2011, Paulinas Editora, 2014,
ISBN 978-989-673-140-3.
Cortesia de PEditora/JDACT