A Concepção do Estado em Marx e Engels
«Antes de chegarmos à teoria do Estado em Marx e Engels,
gostaria de dar uma ideia sobre a maneira como se desenvolveu anteriormente
essa teoria; isto é, uma ideia, embora sumária, das grandes concepções, com que
deparou Marx: a concepção liberal e a concepção democrático-burguesa do Estado.
Na pesquisa, devemos proceder sabendo que uma primeira definição só pode ser
provisória e que, mais adiante, ela pode demonstrar-se completamente errónea, devendo
ser mudada. Considerado isso, vamos partir de uma definição do que se entende
como Estado. Na Enciclopédia Trecani lê-se: com a palavra Estado, indica-se
modernamente a maior organização política que a humanidade conhece; ela refere-se
quer ao complexo territorial e demográfico sobre o qual se exerce uma dominação
(isto é, o poder político), quer à relação de coexistência e de coesão das leis
e dos órgãos que dominam sobre esse complexo. Portanto o Estado é um poder
político que se exerce sobre um território e um conjunto demográfico (isto é,
uma população, ou um povo); e o Estado é a maior organização política que a
humanidade conhece. Talvez seja útil analisarmos essa definição. Ela nos diz,
que no Estado estão presentes três elementos: poder político, povo e
território. É necessária a presença desses três elementos para que se possa falar
de Estado. Nesse sentido, por exemplo, o Vaticano não é um Estado no verdadeiro
sentido da palavra. É um Estado por convenção, no sentido de que dispõe do
poder e de um território (embora pequeno, mas isso não tem importância), mas
não tem um povo. Essa é apenas uma descrição externa do Estado, não é uma
explicação da sua natureza intrínseca. Em nossa pesquisa, vamos partir do
Estado moderno. O Estado moderno, o Estado unitário dotado de um poder próprio
independente de quaisquer outros poderes, começa a nascer na segunda metade do
século XV na França, Inglaterra e Espanha; posteriormente alastra-se por outros
países europeus, entre os quais, muito mais tarde, a Itália. Como sempre
acontece, só quando se formam os Estados no sentido moderno da palavra é que
nasce também uma reflexão sobre o Estado. Desde o começo de 1500 temos Nicolau
Maquiavel, que é o primeiro a reflectir sobre o Estado. No Príncipe de
Maquiavel encontramos esta afirmação: todos os Estados, todas as dominações que
tiveram e têm o império sobre os homens foram e são repúblicas ou principados. Também
aqui o Estado consiste na dominação (poder) e o que está sendo frisado é a
dominação sobre os homens. O que interessa é esse grifo do elemento da dominação,
e de uma dominação exercida mais sobre os homens do que sobre o território. Gramsci,
em toda a sua longa e cuidadosa reflexão sobre Maquiavel, afirma que ele foi o
teórico da formação dos Estados modernos. Com efeito, o pensamento de Maquiavel
se molda numa Itália onde havia fracassado a revolução das Comunas
(cidades-Estado), num país fragmentado em muitos Estados pequenos, e que está a
caminho de perder a sua independência nacional desde a invasão das tropas do
rei francês Carlos VIII, em 1494. Maquiavel, reflectindo sobre a experiência de
outros países (Espanha, Inglaterra e, principalmente, França), analisa a
maneira como se deveria construir na Itália um Estado moderno e unitário,
graças à iniciativa do Príncipe. Maquiavel, na verdade, é um republicano e um
democrata, ligado à experiência da República de Florença, da Comuna florentina;
ele afirma que nenhum príncipe, mesmo dos mais sábios, pode ser tão sábio como
o povo. Apesar disso, ao escrever O príncipe, Maquiavel parte da
consciência do facto de que na Itália existe uma situação de crise de todas as
velhas instituições e que só se poderá reconstruir o Estado, renovar a
sociedade, se existir o poder absoluto de um príncipe que encabece esse movimento.
Em outra obra de Maquiavel, onde faz comentários à história de Roma,
encontramos uma reflexão sobre a lenda de Rómulo e Remo: ele afirma que Rômulo fez
bem em matar Remo, pois no acto de fundar, ou de reconstruir, ou de reorganizar
um Estado só uma pessoa deve mandar. Na Itália, tratava-se de fundar um Estado
e de reconstituir uma organização política da sociedade italiana. Para tanto,
Maquiavel pensa no poder de um príncipe, embora ele próprio seja republicano e
democrata, ligado emocionalmente à República de Florença. Uma fase importante
da formação do Estado moderno foi a rebelião da Inglaterra, mais exactamente de
Henrique VIII, contra o poder do papa. A Igreja da Inglaterra separou-se da
Igreja católica e Henrique VIII foi proclamado chefe dessa Igreja anglicana.
Estamos em 1531. Claro está que é puramente circunstancial a questão do
divórcio de Henrique VIII de sua esposa espanhola, Catarina de Aragão, para
casar com Ana Bolena; esse divórcio foi recusado pelo papa por uma motivação
política, pois ele não queria perder a amizade com a Espanha, que era então um
grande império possuindo territórios também na Itália. Na verdade, as condições
estavam maduras para a proclamação da plena independência inglesa, da plena
soberania do Estado; e do rei que personifica, representa e realiza a soberania
do Estado, declarando-se também chefe da Igreja anglicana. Com esse acto firma-se
que o poder do Estado é absoluto, que a soberania estatal é absoluta e não
depende de nenhuma outra autoridade, isto é, que não vem da autoridade do papa;
a soberania do monarca vem da sua própria condição de monarca, este não a
recebe do papa. Proclama-se, assim, a absoluta autonomia e soberania do Estado».
In
Luciano Gruppi, Tudo Começou com Maquiavel, L&PM Editores, 1980, ISBN 978-852-540-500-5.
Cortesia de L&PME/JDACT