terça-feira, 12 de setembro de 2017

Por Amor a uma Mulher Domingos Amaral. «O alferes, leal comandante das tropas do conde, era incapaz de aceitar que aquele homem de quarenta e seis anos, e ainda na força da vida, fosse abatido de uma forma tão impiedosa»

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Astorga, Maio de 1112
«(…) O alferes agitou-se, engolindo em seco: ele falou convosco?, perguntou. Depois de pedir a Egas que lhe guardasse a sua grande espada, que um dia teria de entregar ao filho, o conde Henrique apenas dirigira algumas palavras a este último, em francês, pois era nascido na Borgonha e nunca aprendera bem a língua do Condado Portucalense. Pediu ao menino que lutasse contra os mouros, defendesse as suas terras. No fim, falou em Jerusalém, no túmulo de Cristo... Não o compreendi, já estava a finar-se, contou Egas Moniz. Observou Afonso Henriques, que permanecia sentado no colchão e de olhos muito abertos, mirando o corpo inerte do pai. Pobre criança, murmurou. A meio da tarde, perto de soçobrar, o conde perguntara pelo alferes. O que vos queria ele?, questionou Egas. Paio Soares ia responder, mas nesse momento a porta abriu-se e por ela entraram a rainha dona Urraca e sua irmã, a condessa dona Teresa. Com os olhos brilhando de uma curiosidade assaz suspeita, a primeira aproximou-se, e Egas Moniz vislumbrou um sorriso instantâneo de contentamento, que logo desapareceu, coberto por uma cara compungida, falsa mas solene.
Que alma sofredora. Desde que meu pai o baniu de Toledo, nunca mais sossegou – sentenciou, Urraca. Atrás dela, Teresa declarou: tenho de o levar, será enterrado em Braga, era o seu desejo. A rainha suspirou e depois perguntou a Paio Soares: haveis acompanhado o conde desde que voltou da Terra Santa? Nervoso, o alferes bateu as pestanas e declarou que assim era. A rainha quis saber se ele ouvira falar de uma relíquia trazida de Jerusalém, que o conde teria escondido. Paio Soares, cada vez mais aflito, voltou a negar, e então Urraca avisou-o: cuidado, alferes, a mentira tem a perna curta. Tal como a afronta. Olhou de soslaio para o morto e depois deu meia-volta, seguida de dona Teresa. Ao ver o pequeno príncipe, perguntou à irmã: é o vosso aleijadinho? Dona Teresa atrapalhou-se: a deficiência física de Afonso Henriques, que viera ao mundo com as pernas tortas e definhadas, embaraçava-a. Junto à cama, um incomodado Egas Moniz exclamou: está muito melhor, até já corre! Urraca limitou-se a murmurar, como se dele tivesse imensa pena: coitadito. Depois, saiu do quarto, enquanto Teresa mirava o filho com um ar ressentido, nem lhe retribuindo o sorriso que o menino lhe abriu, antes de a ver partir também. Egas Moniz, em voz baixa, comentou, desolado: pobre príncipe. Nem pai, nem mãe...
Paio Soares, com os caracóis morenos despenteados e aina molhados da chuva, abanou a cabeça, pesaroso, como se carregasse na alma todas as desilusões do mundo. Desde esse dia, dizia-se, passou a ter pesadelos, temendo que dona Urraca o mandasse prender e torturar. Vinte anos mais tarde, meu pai, Egas Moniz, que Deus o guarde, sempre que me via desgrenhado, exclamava: Lourenço Viegas, meu filho, pareces o Paio Soares quando chegou a Astorga, no dia da morte do conde! Por vezes, são estes detalhes que as pessoas melhor recordam, e assim era com meu pai, embora naquela noite em Astorga ele soubesse perfeitamente que o grotesco desalinho dos caracóis morenos de Paio Soares não se devia a desleixo, pois até era um homem vaidoso, mas sim à chuva e, sobretudo, à turbulência das suas emoções. O alferes, leal comandante das tropas do conde, era incapaz de aceitar que aquele homem de quarenta e seis anos, e ainda na força da vida, fosse abatido de uma forma tão impiedosa». In Domingos Amaral, Assim Nasceu Portugal, Por Amor a uma Mulher, Casa das Letras, 2015, ISBN 978-989-741-262-2.

Cortesia de CdasLetras/JDACT