Astorga,
Maio de 1112
«(…) O alferes agitou-se, engolindo
em seco: ele falou convosco?, perguntou. Depois de pedir a Egas que lhe guardasse
a sua grande espada, que um dia teria de entregar ao filho, o conde Henrique apenas
dirigira algumas palavras a este último, em francês, pois era nascido na Borgonha
e nunca aprendera bem a língua do Condado Portucalense. Pediu ao menino que lutasse
contra os mouros, defendesse as suas terras. No fim, falou em Jerusalém, no túmulo
de Cristo... Não o compreendi, já estava a finar-se, contou Egas Moniz. Observou
Afonso Henriques, que permanecia sentado no colchão e de olhos muito abertos, mirando
o corpo inerte do pai. Pobre criança, murmurou. A meio da tarde, perto de soçobrar,
o conde perguntara pelo alferes. O que vos queria ele?, questionou Egas. Paio
Soares ia responder, mas nesse momento a porta abriu-se e por ela entraram a rainha
dona Urraca e sua irmã, a condessa dona Teresa. Com os olhos brilhando de uma
curiosidade assaz suspeita, a primeira aproximou-se, e Egas Moniz vislumbrou um
sorriso instantâneo de contentamento, que logo desapareceu, coberto por uma cara
compungida, falsa mas solene.
Que alma sofredora. Desde que meu
pai o baniu de Toledo, nunca mais sossegou – sentenciou, Urraca. Atrás dela, Teresa
declarou: tenho de o levar, será enterrado em Braga, era o seu desejo. A rainha
suspirou e depois perguntou a Paio Soares: haveis acompanhado o conde desde que
voltou da Terra Santa? Nervoso, o alferes bateu as pestanas e declarou que assim
era. A rainha quis saber se ele ouvira falar de uma relíquia trazida de Jerusalém,
que o conde teria escondido. Paio Soares, cada vez mais aflito, voltou a negar,
e então Urraca avisou-o: cuidado, alferes, a mentira tem a perna curta. Tal como
a afronta. Olhou de soslaio para o morto e depois deu meia-volta, seguida de dona
Teresa. Ao ver o pequeno príncipe, perguntou à irmã: é o vosso aleijadinho? Dona
Teresa atrapalhou-se: a deficiência física de Afonso Henriques, que viera ao mundo
com as pernas tortas e definhadas, embaraçava-a. Junto à cama, um incomodado Egas
Moniz exclamou: está muito melhor, até já corre! Urraca limitou-se a murmurar, como
se dele tivesse imensa pena: coitadito. Depois, saiu do quarto, enquanto Teresa
mirava o filho com um ar ressentido, nem lhe retribuindo o sorriso que o menino
lhe abriu, antes de a ver partir também. Egas Moniz, em voz baixa, comentou, desolado:
pobre príncipe. Nem pai, nem mãe...
Paio Soares, com os caracóis
morenos despenteados e aina molhados da chuva, abanou a cabeça, pesaroso, como se
carregasse na alma todas as desilusões do mundo. Desde esse dia, dizia-se, passou
a ter pesadelos, temendo que dona Urraca o mandasse prender e torturar. Vinte anos
mais tarde, meu pai, Egas Moniz, que Deus o guarde, sempre que me via desgrenhado,
exclamava: Lourenço Viegas, meu filho, pareces o Paio Soares quando chegou a Astorga,
no dia da morte do conde! Por vezes, são estes detalhes que as pessoas melhor recordam,
e assim era com meu pai, embora naquela noite em Astorga ele soubesse perfeitamente
que o grotesco desalinho dos caracóis morenos de Paio Soares não se devia a desleixo,
pois até era um homem vaidoso, mas sim à chuva e, sobretudo, à turbulência das suas
emoções. O alferes, leal comandante das tropas do conde, era incapaz de aceitar
que aquele homem de quarenta e seis anos, e ainda na força da vida, fosse abatido
de uma forma tão impiedosa». In Domingos Amaral, Assim Nasceu Portugal,
Por Amor a uma Mulher, Casa das Letras, 2015, ISBN 978-989-741-262-2.
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