terça-feira, 12 de setembro de 2017

Por Amor a uma Mulher Domingos Amaral. «… dona Teresa para mandar chamar Egas Moniz e o príncipe Afonso Henriques, e também Paio Soares, cumprindo os pedidos do moribundo conde»

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Astorga, Maio de 1112
«Numa noite de chuva e trovoada, um solitário cavaleiro chegou à povoação de Astorga encharcado e angustiado, temendo ter-se atrasado. Paio Soares, alferes do conde Henrique, viera a galope da Maia, sua terra natal, só parando para trocar de cavalos nos apeadeiros do caminho. Um mensageiro dissera-lhe que corresse a Astorga, para onde já partira o príncipe Afonso Henriques, e ele assim fizera, transportando o terrível receio de não chegar a horas. O conde Henrique e ele tinham passado quase um ano juntos, em combates contra os sarracenos perto de Sintra, ou a amainar uma rebelião local, em Coimbra, e quando o deixara semanas antes, em Guimarães, o conde estava de excelente saúde. Embora a sua disposição não fosse a melhor, pois nunca estabilizara após as quezílias com o sogro Afonso VI, o conde nem estava doente nem fraco e combatera como sempre, com determinação e valentia. Paio Soares, que o conhecia bem, sabia que as feridas nascidas em Toledo ainda não tinham sarado, mas o conde parecia no bom caminho. Três anos antes, revoltara-se contra o imperador, por discordar das suas decisões sucessórias. Afonso VI, pai de dona Teresa e de dona Urraca, por não ter varão a quem deixar os reinos cristãos de Leão, Castela e Galiza, um pouco antes de morrer decidira arriscar uma união improvável, obrigando a sua filha mais velha, Urraca, a casar com um primo distante, Afonso I de Aragão.
Só o conde Henrique se revoltara contra esta escolha, e por isso fora banido de Toledo e sujeito à ira do imperador. Cabisbaixo, deixara a capital e viajara até à Terra Santa em peregrinação. No regresso, vinha diferente, fechado e sempre a cismar, e as suas
lealdades pareciam pouco firmes. Embora se tivesse submetido a dona Urraca, não nutria respeito à rainha regente, nem por ela tinha qualquer admiração. A tensão entre os dois era evidente, mas não se imaginava um resultado tão terrível como a inesperada morte do conde. Depois de passar pelas tropas leonesas de dona Urraca, acampadas em redor do castelo, o alferes entrou pela porta da muralha, desmontou, despiu o manto molhado e, sem sequer alinhar os seus caracóis negros e revoltos, dirigiu-se à torre de menagem de Astorga e subiu as escadas interiores em passadas largas.
Quando abriu a porta do quarto do conde, viu do seu lado direito um pequeno colchão, onde uma criança de três anos estava sentada, de olhos muito abertos e assustada, enquanto à sua frente um nobre portucalense se debruçava sobre uma enorme cama. O conde Henrique estava deitado nela e a sua cara pálida e seca, envolta numas longas barbas cinzentas, demonstrava já a rigidez dos defuntos. Alguém, talvez a criada, colocara-lhe as mãos em cirna da barriga, uma sobre a outra. Paio Soares entristeceu-se: o homem que mais admirava entregara a sua alma à Providência, ele não chegara a tempo! Mas, para além da amargura, um fio de nervosismo percorria-lhe a espinha: teria o conde revelado algum segredo a Egas Moniz, ou ao prior que o confessara e lhe dera a extrema-unção? Paio..., murmurou Egas Moniz, ao vê-lo. O alferes avançou uns passos, aproximando-se do senhor de Ribadouro, que levou um dedo à boca e lhe pediu silêncio. Ficaram a observar a criada compor o morto e o prior terminar as orações. Só quando estes saíram do quarto é que Egas voltou a falar. Aproximai-vos. Junto ao falecido conde, Egas Moniz olhou para trás. Ao ver que o pequeno Afonso Henriques os observava, tapou-lhe a visão, colocando-se à sua frente. Então, debruçando-se, abriu a boca do conde e apontou para a sua língua hirta e escurecida. Peçonha, murmurou.
Paio Soares explodiu de fúria e perguntou num grito quem poderia ter cometido tal enormidade, mas Egas olhou para o príncipe, pedindo-lhe que baixasse o tom de voz. Foi a rainha dona Urraca, murmurou. O alferes espantou-se: porque mandaria a rainha matar o cunhado, marido de sua irmã, dona Teresa? O conde Henrique era aliado dela! O perceptor de Afonso Henriques suspirou: discutiram. O conde exigiu que a rainha cedesse a Galiza a dona Teresa, ameaçou lutar contra ela... Além disso, falou numa relíquia, trazida da Terra Santa, que iria iluminar a luta contra os sarracenos, e que só entregaria a um novo rei. Nesse momento, olhou de novo para Afonso Henriques: o seu filho. O desvario apoderara-se da rainha Urraca, que ameaçara matar o conde. Dias depois, tendo este recusado uma proposta de paz ou revelar onde escondera o artefacto sagrado, os efeitos da peçonha haviam-se começado a notar. A morte por envenenamento fora lenta, dando tempo a dona Teresa para mandar chamar Egas Moniz e o príncipe Afonso Henriques, e também Paio Soares, cumprindo os pedidos do moribundo conde». In Domingos Amaral, Assim Nasceu Portugal, Por Amor a uma Mulher, Casa das Letras, 2015, ISBN 978-989-741-262-2.

Cortesia de CdasLetras/JDACT