«(…) Antes da chegada dos
franceses, as batalhas tinham coreografado em grande medida os assuntos em Itália,
dirigidas por condottieri rivais sem o mais pequeno desejo de infligir
ferimentos nos mercenários seus adversários, que bem poderiam ser os aliados na
época seguinte. Quando uma das partes era empurrada para uma posição
indefensável (quer dizer, uma posição da qual não pudesse fugir rapidamente),
admitia a derrota, e os dois comandantes rivais chegavam a um acordo mútuo
satisfatório. O pesado exército medieval francês não conhecia essas subtilezas.
As batalhas eram travadas com um vigor sedento de sangue e terminavam com frequência
com o massacre de todos os que não conseguiam fugir. Era assim que a guerra era
travada na Europa do Norte, e o exército francês estava bem treinado neste tipo
de actividade, pois a Guerra dos Cem Anos, contra os ingleses, tinha acabado
apenas umas décadas antes. Ao mesmo tempo, o exército francês levava para
Itália uma arma nova: o grande canhão móvel. Os italianos dispunham de canhões
mais pequenos, puxados por bois pesadões, e cujas munições consistiam em
pequenas balas feitas de pedra, que geralmente se despedaçavam contra os muros
sólidos das fortalezas. Os enormes canhões franceses estavam montados de modo a
serem puxados rapidamente por parelhas de cavalos através do país, e disparavam
enormes balas de ferro capazes de abrir buracos nos mais impressionantes muros
das fortalezas. A medida que Carlos VIII marchava em direcção ao sul, as
fortalezas situadas no seu caminho capitulavam uma após outra, muitas vezes sem
ser preciso disparar um único tiro, tal era o terror que o exército francês
infundia mesmo antes da sua chegada.
Ao papa Alexandre VI, em Roma,
chegava a notícia de que o cardeal Ascanio Sforza tinha persuadido os seus
aliados Colonna a fugir e a tomar os portos costeiros de Óstia e Civitavecchia
em nome dos franceses. Roma ficava assim isolada das suas fontes de
abastecimento. Quando Carlos VIII se virou para Roma, as forças dos Orsini
desertaram também para o lado dos franceses. Alexandre VI compreendeu que a
resistência armada seria inútil e enviou as poucas tropas que ainda lhe
restavam para Nápoles, no Sul. No dia 14 de Dezembro de 1494, Carlos VIII e o
seu exército entraram em Roma sem encontrar resistência. As suas tropas eram
tão numerosas que as colunas de soldados de infantaria franceses, mercenários
suíços e esquadrões de cavalaria levaram desde as 15 até às 21 horas a passar
pelas ruas. À procissão aparentemente interminável seguiu-se o troar dos 36
canhões montados rolando por cima das pedras da calçada, arrastados por cavalos.
As multidões pasmavam aterrorizadas ao velem os canhões de quase 2,5 metros,
cada um pesando 2700 quilos, os seus canos de bronze a luzir à luz das tochas,
as bocas negras suficientemente grandes para lá entrar a cabeça de um homem.
Ainda assim, Alexandre VI
recusou-se a uma rendição pública. Junto com o cardeal César Bórgia, seu filho,
fugiu através do túnel secreto do Vaticano para a velha e maciça fortaleza de
Castel Sant'Angelo. Naquele momento, as ruas estavam em tumulto. Carlos VIII mandou
montar cadafalsos públicos, para dissuadir os seus homens de actos de pilhagem,
mas os soldados franceses e suíços tentaram trepar os muros barricados dos palazzi,
em busca de bens para saquear. Nem a residência da mãe de César, Vannozza,
escapou: os mercenários suíços conseguiram entrar e saqueá-la, levando 800
ducados. Por aquela altura, já o inimigo jurado de Alexandre VI, o cardeal
Giovanni della Rovere, se juntara a Carlos VIII e encorajava-o a pedir que o
papa se submetesse a um concílio que procedesse à reforma do papado. Nas
palavras do historiador contemporâneo Guicciardini, para Alexandre VI, a ideia
de fazer reformas era um pensamento tão terrível que não havia palavras que o
descrevessem.
Alexandre
VI manteve-se obstinado na sua posição, mas Della Rovere e os cardeais que o
apoiavam pressionavam constantemente o rei para que afastasse da Santa Sé um
papa tão cheio de vícios e abominações e elegesse outro. Por fim, Carlos VIII
perdeu a paciência e mandou alinhar os canhões frente aos muros do Castel
Sant'Angelo; mas, antes que fosse disparado um único tiro, uma grande secção de
quase dez metros das muralhas antigas desabou sozinha, arrastando os soldados
que guardavam as ameias e sepultando-os num monte de escombros. Mal a nuvem de
poeira tinha assentado, já Alexandre VI concordava em reunir-se com Carlos VIII».
In
Paul Strathern, O Artista, o Filósofo e o Guerreiro, Da Vinci, Maquiavel e
Bórgia e o Mundo que eles Criaram, Clube do Autor, Lisboa, 2009, ISBN
978-989-724-010-2.
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