sexta-feira, 15 de setembro de 2017

Por Amor a uma Mulher Domingos Amaral. «Por essa razão, Taxfin tinha decidido vir em conjunto até Coimbra tomar a cidade cristã que resistia há tantos anos, e tentar matar os descendentes do imperador Afonso VI»

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Coimbra, Julho de 1116
«(…) A hostilidade entre os dois grupos de muçulmanos era evidente. Taxfin, tal como Zulmira e Abu Zhakaria, era um cordovês, um árabe da Andaluzia, enquanto Ali Yusuf e os seus berberes eram uns brutamontes dos desertos africanos, sanguinários e primitivos. Aquela era uma aliança forçada e desagradável, embora necessária. Para vencer os cristãos, os andaluzes precisavam dos berberes e da sua energia bélica. Os governadores das taifas, os walis de Córdova, Sevilha ou Badajoz, apesar de contrariados, aceitavam o jugo de Ali Yusuf, o califa de Marraquexe, mesmo que fosse apenas temporariamente. Por essa razão, Taxfin tinha decidido vir em conjunto até Coimbra tomar a cidade cristã que resistia há tantos anos, e tentar matar os descendentes do imperador Afonso VI, dona Teresa e seu filho Afonso Henriques. Ali Yusuf, que antes já matara o único varão do monarca cristão, queria aniquilar o resto da família. Taxfin era apenas um wali, e precisava ainda do califa, pois não tinha assim tantos homens, só em Córdova a sua palavra e as suas ordens eram aceites. Talvez por isso, o azedume dos andaluzes contra os berberes transformara a empresa numa tormenta. Havia quezílias permanentes e as escaramuças só se suspenderam quando chegaram aos arrabaldes de Coimbra e atacaram os cristãos das redondezas.
O intervalo pacífico durou pouco tempo: o califa tinha dúvidas sobre o ataque à cidade, e mais nervoso ficou quando Taxfin voltou triunfante de Soure, dizendo que a povoação fora arrasada. Cuidado, meu marido, Ali Yusuf é ciumento, murmurara Zulmira. Tinha razão: vinte e cinco dias depois de cercarem Coimbra, Ali Yusuf começou a dar sinais contraditórios. Falava em combates em Saragoça, em Valência, em Toledo, e Taxfin regressara à tenda da família, sempre acompanhado de Abu Zhakaria, a vociferar que o califa era um cobarde e um tolo! Devíamos matá-lo aqui, às portas de Coimbra! Pendurar a cabeça do estúpido berbere nas muralhas cristãs, antes de tomar a cidade! Zaida, de cinco anos apenas, olhou-o, pálida, enquanto Zulmira o repreendia levemente: esposo, não faleis assim, assustais as minhas filhas. Taxfin sorriu às meninas, colocou mais uma vez o dedo em frente à boca, e nessa noite adormeceu-as a contar histórias da serra Morena, do castelo de Hisn Abi Cherif para onde a família se retirava no Verão, e onde duas criadas os brindavam com os seus suculentos escabeches e os seus saborosos ensopados. Contudo, pouco antes de cair no sono, na cama e de mão dada com a sua amada esposa, reconhecera-lhe em surdina que desejava matar o califa, pois estava farto daquele aberrante ser. É cedo, Taxfin, contrapusera Zulmira.
No seu coração, ela também ambicionava o fim de Ali Yusuf, ainda mais do que Taxfin. Considerava-o um usurpador, e não aceitava as leituras literais e abusivas do Corão feitas pelos almorávidas, que classificava de odiosos e sanguinários! Ela e as filhas, tal como Taxfin e Abu Zhakaria, pertenciam a uma civilização diferente, eram os herdeiros da esplendorosa Córdova do passado. Incapaz de adormecer, Zulmira deixara o seu espírito divagar. Taxfin era o seu segundo marido, e o casamento deles, quatro anos antes, fora o início de uma longa caminhada, onde se aliavam o sangue real dela e das filhas, e a habilidade militar e política dele. No presente, já governavam Córdova, e sem pressas, mas também sem pausas, estavam a construir uma rede de alianças e cumplicidades para no futuro se rebelarem contra Ali Yusuf». In Domingos Amaral, Assim Nasceu Portugal, Por Amor a uma Mulher, Casa das Letras, 2015, ISBN 978-989-741-262-2.

Cortesia de CdasLetras/JDACT