Coimbra,
Julho de 1116
«(…) A hostilidade entre os dois grupos
de muçulmanos era evidente. Taxfin, tal como Zulmira e Abu Zhakaria, era um
cordovês, um árabe da Andaluzia, enquanto Ali Yusuf e os seus berberes eram uns
brutamontes dos desertos africanos, sanguinários e primitivos. Aquela era uma
aliança forçada e desagradável, embora necessária. Para vencer os cristãos, os
andaluzes precisavam dos berberes e da sua energia bélica. Os governadores das
taifas, os walis de Córdova, Sevilha ou Badajoz, apesar de contrariados,
aceitavam o jugo de Ali Yusuf, o califa de Marraquexe, mesmo que fosse apenas
temporariamente. Por essa razão, Taxfin tinha decidido vir em conjunto até
Coimbra tomar a cidade cristã que resistia há tantos anos, e tentar matar os
descendentes do imperador Afonso VI, dona Teresa e seu filho Afonso Henriques.
Ali Yusuf, que antes já matara o único varão do monarca cristão, queria aniquilar
o resto da família. Taxfin era apenas um wali, e precisava ainda do
califa, pois não tinha assim tantos homens, só em Córdova a sua palavra e as
suas ordens eram aceites. Talvez por isso, o azedume dos andaluzes contra os
berberes transformara a empresa numa tormenta. Havia quezílias permanentes e as
escaramuças só se suspenderam quando chegaram aos arrabaldes de Coimbra e
atacaram os cristãos das redondezas.
O intervalo pacífico durou pouco
tempo: o califa tinha dúvidas sobre o ataque à cidade, e mais nervoso ficou
quando Taxfin voltou triunfante de Soure, dizendo que a povoação fora arrasada.
Cuidado, meu marido, Ali Yusuf é ciumento, murmurara Zulmira. Tinha razão:
vinte e cinco dias depois de cercarem Coimbra, Ali Yusuf começou a dar sinais
contraditórios. Falava em combates em Saragoça, em Valência, em Toledo, e Taxfin
regressara à tenda da família, sempre acompanhado de Abu Zhakaria, a vociferar
que o califa era um cobarde e um tolo! Devíamos matá-lo aqui, às portas de
Coimbra! Pendurar a cabeça do estúpido berbere nas muralhas cristãs, antes de
tomar a cidade! Zaida, de cinco anos apenas, olhou-o, pálida, enquanto Zulmira
o repreendia levemente: esposo, não faleis assim, assustais as minhas filhas.
Taxfin sorriu às meninas, colocou mais uma vez o dedo em frente à boca, e nessa
noite adormeceu-as a contar histórias da serra Morena, do castelo de Hisn Abi
Cherif para onde a família se retirava no Verão, e onde duas criadas os
brindavam com os seus suculentos escabeches e os seus saborosos ensopados. Contudo,
pouco antes de cair no sono, na cama e de mão dada com a sua amada esposa,
reconhecera-lhe em surdina que desejava matar o califa, pois estava farto
daquele aberrante ser. É cedo, Taxfin, contrapusera Zulmira.
No seu coração, ela também
ambicionava o fim de Ali Yusuf, ainda mais do que Taxfin. Considerava-o um
usurpador, e não aceitava as leituras literais e abusivas do Corão feitas pelos
almorávidas, que classificava de odiosos e sanguinários! Ela e as filhas, tal
como Taxfin e Abu Zhakaria, pertenciam a uma civilização diferente, eram os
herdeiros da esplendorosa Córdova do passado. Incapaz de adormecer, Zulmira
deixara o seu espírito divagar. Taxfin era o seu segundo marido, e o casamento
deles, quatro anos antes, fora o início de uma longa caminhada, onde se aliavam
o sangue real dela e das filhas, e a habilidade militar e política dele. No presente,
já governavam Córdova, e sem pressas, mas também sem pausas, estavam a
construir uma rede de alianças e cumplicidades para no futuro se rebelarem
contra Ali Yusuf». In Domingos Amaral, Assim Nasceu Portugal, Por Amor a uma Mulher, Casa
das Letras, 2015, ISBN 978-989-741-262-2.
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