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Astorga, Maio de 1112
«(…) Mas, desde a morte do imperador Afonso VI, as lutas na Hispânia eram permanentes, instáveis e confusas. O conde Henrique, mesmo sem ter o apoio de sua esposa, dona Teresa, alimentava desejos de grandeza que chocavam frontalmente com os da cunhada. Teria sido eliminado por causa disso? Nada era impossível naquela barafunda trágica que atingia a Península. Dona Urraca era má e traiçoeira, imprevisível e cobarde, uma mulher que só servia para baralhar os adultos e meter medo às crianças. Mandar envenenar o conde não surpreenderia ninguém, já tentara o mesmo com o próprio marido, Afonso I de Aragão.
Sempre que me mandava pentear, meu pai relembrava também que fora ali, naquele quarto escuro e triste de Astorga, que o reino de Portugal começara a nascer. Lourenço Viegas, meu filho, a morte do conde Henrique foi o princípio de tudo! Com ele vivo, o príncipe Afonso Henriques não teria ficado órfão de pai; Paio Soares não se teria afastado para a Maia; os Trava não teriam dominado dona Teresa; Chamoa não casaria com quem casou e a relíquia seria encontrada! Curiosamente é também essa a conclusão da minha investigação sobre o desaparecimento da famosa relíquia, que fiz a pedido do meu melhor amigo, Afonso Henriques. Esta longa história começou ali, naquele quarto, com a morte prematura e criminosa de seu pai. Se ele fosse vivo, Portugal não teria nascido assim. Quem tem razão é Zaida, a princesa moura de Córdova, que me disse um dia: os órfãos de pai ou são brutos ou génios. Ou as duas coisas.
Coimbra, Julho de 1116
À súbita retirada das tropas do califa All Yusuf estava a gerar uma desordem inesperada no acampamento muçulmano. Zulmira, à porta da sua tenda, de mão dada com as filhas Fátima e Zaida, parecia atarantada com o que via. Mantas e esteiras sacudidas à pressa, panelas de sopa a serem despejadas na lama, cavalos a trote cruzando-se com criadas de sacas à cabeça, dançarinas do harém de Yusuf, seminuas e aos gritinhos, à procura dos alifafes e dos colares no meio do pó, estandartes antes orgulhosos que eram atirados para o chão com desleixo. Um caos patético e perigoso envolvia-as. A notícia de que o califa de Marraquexe estava febril e indisposto, talvez doente, propagara-se como fogo na erva, e um receio geral contaminava os espíritos daquela multidão acéfala e desnorteada. Mãe, de quem fogem?, perguntou Fátima.
Zulmira suspirou: a desorganização era um hábito do califa almorávida. Ali Yusuf devia a força mais ao número dos seus homens do que ao engenho das suas estratégias. Aquele imenso exército de milhares de almas movera-se pelas estradas das taifas de Córdova, Sevilha e Badajoz de forma lenta e custosa. Faltavam alimentos, água, ordem e moral aos berberes arrogantes que tinham vindo de África e que só a brutalidade qualificava. Taxfin, marido de Zulmira e governador de Córdova, queixara-se permanentemente durante a viagem. Estúpido berbere! Ditos daqueles, só os libertava quando estavam na tenda da famí1ia, tendo apenas o fiel Abu Zhakaria como testemunha. Fátima e Zaida espantavam-se a olhar para Taxfin, enquanto ele apoucava o califa e lhes sorria, colocando um dedo na boca e soltando um aviso: não repitam o que eu disse». In Domingos Amaral, Assim Nasceu Portugal, Por Amor a uma Mulher, Casa das Letras, 2015, ISBN 978-989-741-262-2.
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