«(…) Nada mais lhes restava do que seguir viagem. Apanharam
outro susto no mar traiçoeiro da costa galega, ao dobrar o Cabo Finisterra.
Deus poupou-os contudo a nova tempestade e puderam atracar nas margens do rio
Tambre, perto de Santiago de Compostela, aonde se dirigiram em peregrinação, a
fim de visitar o túmulo do Apóstolo. Rezaram, assistiram às missas..., e eis
que se dá algo, por muitos considerado um milagre: aos poucos, iam-se-lhes
juntando os outros barcos. Quando a 15 de Junho partiram em direcção a
Portugal, a armada estava quase completa. No dia seguinte, avistaram a foz do
rio Douro. Debaixo de um sol radioso, uma extensão infinita de praias estendia-se de Norte a Sul. A cidade
do Porto situava-se a menos de uma légua de distância, mas no seu cais apenas
havia lugar para as naus dos comandantes e dos prelados. As restantes
embarcações tiveram que atracar na zona da foz, a de Konrad ancorou numa
pequena enseada, a meia hora de marcha do Porto. Arnulf de Aarschot, Christian
de Gistell, os comandantes ingleses e franceses e os clérigos foram recebidos
pelo bispo, Pedro Pitões, que regia sobre a cidade.
Sentado
sobre a sua manta, ao lado do prostrado Johann, Konrad olhava com inveja para
os companheiros de viagem que se preparavam para ir dar uma volta à cidade. Gunther,
um ruivo baixote mas encorpado, perguntou-lhe: não queres vir? Não precisas
também de divertimento? O Johann está tão mal, suspirou Konrad. Passou o dia
enjoado, sem comer nada. E logo hoje custa-me deixá-lo sozinho. É o dia do seu
aniversário. Como é que sabes isso?, admirou-se o ruivo. O meu pai fazia
questão dessas coisas. Ah é verdade. A gente até se esquece de que éreis filhos
de um cavaleiro. E, já agora, quantos anos faz o fedelho? Dezasseis. Mais uma razão para que
venhais os dois connosco! Ele não está em condições de... Sabes do que é que
ele precisa? De uma mulher! Nem imaginas com que velocidade ele depois
desabrocha. Se calhar tens razão, replicou Konrad, com um sorriso. Já vai sendo
tempo. Levanta-te, rapaz!, bradou Gunther. Não posso. Estou doente. E eu
conheço o remédio que te há-de curar!
Anoitecia,
quando Konrad, Johann, Hadwig e Gunther se puseram a caminho da cidade. O tempo
ameno dispensava capotes, bastavam as suas túnicas de linho, que, por cima das
calças, lhes chegavam aos joelhos. Como era costume, levavam punhais enfiados
nos cintos. Os cabelos castanho-claros de Konrad caíam-lhe pelos ombros, os
outros três usavam-nos curtos. As colinas eram cada vez mais altas, tanto numa
como na outra margem, o Douro revelava-se um lutador que criara o seu próprio
caminho por entre o desfiladeiro. Pescadores trabalhavam nas suas redes e conversavam à porta das suas cabanas. A
passagem dos estrangeiros, chamavam o resto da família, para que todos pudessem
lançar um olhar aos cruzados vindos de longe. Depois de mais uma curva, a
cidade surgiu no cimo de um cerro de uns duzentos e cinquenta pés de altura,
rodeada pelas muralhas. Também do outro lado do rio se via uma povoação, com o
castelo no alto e várias casas espalhadas pelas escarpas. As construções
escuras de granito junto ao cais do Porto não pareciam convidativas, mas, assim
que os quatro entraram numa das tabernas, envolveu-os uma atmosfera
hospitaleira. Não só os locais se divertiam por lá, também muitos dos
estrangeiros. Apesar do entendimento ser difícil, estabeleciam-se conversas
entre os homens de várias nacionalidades. Os locais estarreceram quando Hadwig
surgiu, provavelmente nunca tinham visto cabelos e sobrancelhas tão claros. Os
quatro sentaram-se à volta de uma mesa e o empregado, um rapaz magro de
caracóis escuros, desejou-lhes as boas-vindas e serviu-lhes vinho tinto. Todos
se apressaram a esvaziar as suas canecas, excepto Johann, que parecia um
condenado à morte sentado à mesa da sua última refeição. Um portuense
aproximou-se, pois a mesa deles era das
poucas em que sobrava uma cadeira. O indivíduo era atlético, embora não tão alto
como Konrad e Hadwig. Usava os cabelos pretos curtos e um bigode farfalhudo
dominava-lhe o semblante. Sentou-se e começou logo a conversar com eles; a bem
da verdade, gesticulava mais do que falava. Disse chamar-se Julião e Johann
animou-se ao constatar que o homem conseguia realmente entender algumas
palavras isoladas de latim, embora nunca tivesse aprendido tal língua». In Cristina Torrão, A Cruz de Esmeraldas, Edição
Ésquilo, 2009, ISBN 978-989-809-261-8.
Cortesia de
Ésquilo/JDACT