Criminosos,
boémios, prostitutas e outros marginais
«Como qualquer outra época, o
século XIX foi povoado por personagens que de modo mais ou menos sistemático
desafiaram as suas regras de boa convivência social. Com rituais, espaços e
horários relativamente específicos, ora claramente distintos dos da população comum,
ora em intersecção com eles, estes eram indivíduos ou grupos em situações que,
de algum modo, entravam em ruptura com os valores da sociedade estabelecida,
mesmo quando dela faziam parte integrante. A sociedade burguesa que caracteriza
o século XIX no mundo ocidental, construiu uma representação moralista do seu
mundo ideal que estava em choque com muitas das condições do quotidiano de
grande parte das populações que então habitavam os campos e cidades das nações
ocidentais. As severas regras de conduta propostas pela nova elite politico económica,
se eram adequadas ao modelo de vida de uma estreita faixa da sociedade,
familiar, sóbrio, racional, avesso à desordem, ao excesso e ao protesto,
revelavam-se claramente desenquadradas das condições concretas de existência de
muitos indivíduos das mais diversas origens. Os comportamentos alternativos ao
modelo ideal que necessariamente se verificavam, podiam com ele entrar em mais
ou menos frontal confronto. Os que de forma mais evidente chocavam com as
propostas burguesas seriam associados a um universo comum de transgressão e
marginalidade. Se na representação burguesa da sociedade oitocentista se reconhece
a facilidade e rapidez com que procedia à catalogação dos fenómenos sociais e
na caracterização de tipos, não é menos verdade que muitos deles eram
remetidos, em conjunto, para uma amálgama comum de comportamentos associados a
uma patologia social, de contornos vastos e protagonistas variados. No seu
interior podiam mover-se prostitutas profissionais ou ocasionais, perigosos
criminosos de delito comum reincidentes ou pequenos larápios de circunstância,
velhos boémios em permanente busca de novas experiências ou jovens burgueses em
iniciação nos prazeres da vida, marialvas,
fadistas, operários em busca de diversão, que todos eram identificados com um
universo comum que era essencial circunscrever, já que se verificaria ser
impossível erradicar por completo.
Se estes fenómenos e indivíduos
já tinham uma natural tendência para ocorrerem e se moverem em espaços e
horários próprios da vida das comunidades, a sociedade burguesa não deixaria de
vincar e reforçar todos os sinais de diferenciação entre o seu mundo, o da
Ordem, e o de todos que cediam à tentação na queda no abismo da desordem. As
elites políticas, um pouco por todo o lado, como em Portugal, quando
estabilizam o seu modo de vida, nascido da quase generalizada vitória da
ideologia liberal burguesa e do seu modo de vida específico, procuram ordenar o
mundo onde vivem. Ordenar os indivíduos, depois de uma prolongada época de
convulsão (em virtude das sequelas de 1789), refrear-lhes os excessos,
atribuir-lhes uma função útil na sociedade, que se não é tão firmemente ditada
pelo nascimento como nos tempos do absolutismo de origem feudal, não deixa de
obedecer a um desejo de harmonia e estabilidade social, abertamente avessa a
manifestações de contestação.
De acordo com este sistema de
valores, a criminalidade, a prostituição, a boémia seriam crescentemente
apresentadas como protagonizadas por indivíduos à margem dos valores da
nascente cultura burguesa, oitocentista e, mais tarde por afinidade, dita vitoriana,
em virtude da cristalização dos seus fundamentos verificada na sociedade
britânica da segunda metade do século. As chamadas classes perigosas viriam a ser objecto, durante o século XIX, de
sucessivos esforços de marginalização compulsiva, na tentativa do seu
afastamento dos circuitos onde circulavam as classes abastadas e elegantes. Esses
grupos viviam quotidianos alternativos ao ideal, que entravam em colisão com as
regras da sociedade liberal que sobre eles exercia o seu poder e autoridade,
tentando afastá-los dos seus itinerários correntes, para o que lhes procurava
determinar espaços e horários próprios, simétricos aos seus, num sistema
dicotómico, redutor e que nunca corresponderia verdadeiramente a uma realidade
que se tentava, esforçadamente, enquadrar em tipologias.
Embora
associassem à irracionalidade, à desordem e ao caos a amálgama de
comportamentos dos grupos sobre os quais consideravam necessário um firme
exercício da autoridade, por viverem quotidianos alternativos, criminais e
perigosos para a ordem social, os analistas da sociedade oitocentista
esforçavam-se insistentemente por categorizá-los e idealizá-los quase tanto
como a (falsa) harmonia em que imaginavam viver as camadas dominantes de
sucesso. Num quadro mental extremamente maniqueísta tudo se parece desenvolver
em oposições simples de compreender: à respeitável família burguesa em que os
progenitores fazem uma divisão de carácter sexual das respectivas funções no
emprego e no lar, reunindo-se placidamente ao fim do dia para um serão em comum
com os filhos obedientes, opõem-se núcleos familiares irregulares, lares
desfeitos, crianças abandonadas, produtos e agentes de muitos dos
comportamentos desviantes detectáveis na sociedade. Às ocupações profissionais de
sucesso, (re)produtoras de riqueza, opõem-se as artes duvidosas do crime, em
que se vive à custa de expedientes e do alheio. À luz do dia em que se passeiam
os senhores, senhoras, meninas e meninos da boa sociedade, opõem-se as trevas
da noite onde se movem boémios, prostitutas e outros marginais. Em Lisboa, às
artérias da cidade elegante, do Rossio, ao Chiado, ao Passeio Público, antes, e
à Avenida, depois, aos jardins da Estrela e de S. Pedro de Alcântara, onde a
iluminação pública começava a avançar opõem-se os becos e vielas dos mais
velhos bairros da cidade (Alfama, Mouraria, Madragoa), onde se amontoam, em emaranhados
sujos, escuros e labirínticos, as tabernas, bordéis, hospedarias e habitações
de duvidosa frequência». In Educar, O Mundo da Transgressão Social, Criminosos,
boémios, prostitutas e outros marginais,
Wordpress,
Boémia, Wikipédia, 2007.
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