Astorga,
Maio de 1112
«Numa noite de chuva e trovoada, um
solitário cavaleiro chegou à povoação de Astorga encharcado e angustiado, temendo
ter-se atrasado. Paio Soares, alferes do conde Henrique, viera a galope da Maia,
sua terra natal, só parando para trocar de cavalos nos apeadeiros do caminho. Um
mensageiro dissera-lhe que corresse a Astorga, para onde já partira o príncipe
Afonso Henriques, e ele assim fizera, transportando o terrível receio de não
chegar a horas. O conde Henrique e ele tinham passado quase um ano juntos, em
combates contra os sarracenos perto de Sintra, ou a amainar uma rebelião local,
em Coimbra, e quando o deixara semanas antes, em Guimarães, o conde estava de excelente
saúde. Embora a sua disposição não fosse a melhor, pois nunca estabilizara após
as quezílias com o sogro Afonso VI, o conde nem estava doente nem fraco e combatera
como sempre, com determinação e valentia. Paio Soares, que o conhecia bem, sabia
que as feridas nascidas em Toledo ainda não tinham sarado, mas o conde parecia no
bom caminho. Três anos antes, revoltara-se contra o imperador, por discordar das
suas decisões sucessórias. Afonso VI, pai de dona Teresa e de dona Urraca, por não
ter varão a quem deixar os reinos cristãos de Leão, Castela e Galiza, um pouco antes
de morrer decidira arriscar uma união improvável, obrigando a sua filha mais
velha, Urraca, a casar com um primo distante, Afonso I de Aragão.
Só o conde Henrique se revoltara
contra esta escolha, e por isso fora banido de Toledo e sujeito à ira do imperador.
Cabisbaixo, deixara a capital e viajara até à Terra Santa em peregrinação. No regresso,
vinha diferente, fechado e sempre a cismar, e as suas
lealdades pareciam pouco firmes. Embora
se tivesse submetido a dona Urraca, não nutria respeito à rainha regente, nem por
ela tinha qualquer admiração. A tensão entre os dois era evidente, mas não se imaginava
um resultado tão terrível como a inesperada morte do conde. Depois de passar pelas
tropas leonesas de dona Urraca, acampadas em redor do castelo, o alferes entrou
pela porta da muralha, desmontou, despiu o manto molhado e, sem sequer alinhar os
seus caracóis negros e revoltos, dirigiu-se à torre de menagem de Astorga e
subiu as escadas interiores em passadas largas.
Quando abriu a porta do quarto do
conde, viu do seu lado direito um pequeno colchão, onde uma criança de três anos
estava sentada, de olhos muito abertos e assustada, enquanto à sua frente um nobre
portucalense se debruçava sobre uma enorme cama. O conde Henrique estava deitado
nela e a sua cara pálida e seca, envolta numas longas barbas cinzentas, demonstrava
já a rigidez dos defuntos. Alguém, talvez a criada, colocara-lhe as mãos em cirna
da barriga, uma sobre a outra. Paio Soares entristeceu-se: o homem que mais
admirava entregara a sua alma à Providência, ele não chegara a tempo! Mas, para
além da amargura, um fio de nervosismo percorria-lhe a espinha: teria o conde revelado
algum segredo a Egas Moniz, ou ao prior que o confessara e lhe dera a extrema-unção?
Paio..., murmurou Egas Moniz, ao vê-lo. O alferes avançou uns passos, aproximando-se
do senhor de Ribadouro, que levou um dedo à boca e lhe pediu silêncio. Ficaram a
observar a criada compor o morto e o prior terminar as orações. Só quando estes
saíram do quarto é que Egas voltou a falar. Aproximai-vos. Junto ao falecido conde,
Egas Moniz olhou para trás. Ao ver que o pequeno Afonso Henriques os observava,
tapou-lhe a visão, colocando-se à sua frente. Então, debruçando-se, abriu a
boca do conde e apontou para a sua língua hirta e escurecida. Peçonha, murmurou.
Paio Soares explodiu de fúria e
perguntou num grito quem poderia ter cometido tal enormidade, mas Egas olhou para
o príncipe, pedindo-lhe que baixasse o tom de voz. Foi a rainha dona Urraca, murmurou.
O alferes espantou-se: porque mandaria a rainha matar o cunhado, marido de sua irmã,
dona Teresa? O conde Henrique era aliado dela! O perceptor de Afonso Henriques suspirou:
discutiram. O conde exigiu que a rainha cedesse a Galiza a dona Teresa, ameaçou
lutar contra ela... Além disso, falou numa relíquia, trazida da Terra Santa, que
iria iluminar a luta contra os sarracenos, e que só entregaria a um novo rei. Nesse
momento, olhou de novo para Afonso Henriques: o seu filho. O desvario
apoderara-se da rainha Urraca, que ameaçara matar o conde. Dias depois, tendo este
recusado uma proposta de paz ou revelar onde escondera o artefacto sagrado, os
efeitos da peçonha haviam-se começado a notar. A morte por envenenamento fora
lenta, dando tempo a dona Teresa para mandar chamar Egas Moniz e o príncipe
Afonso Henriques, e também Paio Soares, cumprindo os pedidos do moribundo conde».
In
Domingos Amaral, Assim Nasceu Portugal, Por Amor a uma Mulher, Casa das Letras,
2015, ISBN 978-989-741-262-2.
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