sexta-feira, 25 de agosto de 2017

Trópico de Capricórnio. Henry Miller. «Ainda usava cueiros e já era filósofo. Era contra a vida por princípio. Que princípio? O princípio da inutilidade. À minha volta toda a gente lutava e se debatia»

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«Uma vez entregue a alma, segue-se tudo com uma certeza infalível, mesmo no meio do caos. Desde o princípio nunca foi outra coisa senão caos: era um fluido que me envolvia, que eu aspirava através das guelras. Nos substratos, onde a Lua brilhava firme e opaca, o ambiente era suave e fecundante; por cima disso, reinavam a selva e a desarmonia. Não tardei a ver em tudo o oposto, a contradicção, e entre o real e o irreal a ironia, o paradoxo. Era o meu próprio pior inimigo. Não havia nada que desejasse fazer que me importasse de não fazer. Já em criança, quando não me faltava nada, queria morrer: queria render-me porque não via sentido nenhum em lutar. Sentia que nada seria provado, comprovado, acrescentado ou subtraído pelo facto de continuar uma existência que não pedira. Todos quantos me cercavam eram falhados, ou, se não eram falhados, eram ridículos. Especialmente os bem-sucedidos. Os bem-sucedidos chateavam-me até às lágrimas. Era cornpreensivo até ao exagero, mas não era a compreensão que assim me tornava. Era uma qualidade puramente negativa, uma fraqueza que desabrochava à simples vista da miséria humana. Nunca ajudava ninguém com a esperança de que isso servisse para alguma coisa; ajudava porque não era capaz de proceder de outro modo. Querer mudar o estado das coisas parecia-me vão, inútil; estava convencido de que nada mudaria, a não ser que se verificasse uma mudança de intenções, e quem poderia modificar o coração dos homens? De vez em quando, um amigo convertia-se, o que me causava vómitos. Tinha tanta necessidade de Deus como Ele de mini, e costumava dizer para comigo que, se havia Deus, me encontraria com Ele calmamente e Lhe cuspiria na cara. O irritante era que, ao primeiro rubor, as pessoas costumavam tomar-me por bom, amável, generoso, leal e fiel. Talvez possuísse essas virtudes, mas se possuía era por ser indiferente: podia-me dar ao luxo de ser bom, amável, generoso, leal, etc., porque estava isento de inveja. A inveja era a única coisa de que nunca tinha sido vítima. Nunca invejei nada nem ninguém. Pelo contrário, só senti compaixão por tudo e todos.
Desde o princípio que me devo ter treinado para não querer nada com muita veemência. Desde o princípio que fui independente, de uma maneira falsa. Não tinha necessidade de ninguém porque queria ser livre, livre para fazer e para dar só de acordo com os meus caprichos. Mal esperavam ou exigiam alguma coisa de mim, recusava e daí não arrancava. Foi essa a forma que a minha independência assumiu. Por outras palavras, fui corrupto, fui corrupto desde o princípio. Dir-se-ia que a minha mãe me dera um veneno como leite, um veneno que nunca me abandonou o organismo, apesar de ter sido desmamado cedo. Parece que até mesmo quando ela me desmamou me mostrei completamente indiferente. A maioria das crianças revoltam-se, ou fingem que se revoltam, mas eu estive-me nas tintas. Ainda usava cueiros e já era filósofo. Era contra a vida por princípio. Que princípio? O princípio da inutilidade. À minha volta toda a gente lutava e se debatia. Pessoalmente, nunca fiz sequer um esforço. Se dava a impressão de que o fazia, era apenas para agradar a alguém; no fundo, estava-me marimbando. E se forem capazes de me dizer porque era assim, desmenti-los-ei, pois nasci com uma pecha má e nada a pode eliminar. Mais tarde, quando já era crescido, ouvi dizer que tiveram um trabalhão para me tirar do útero. Compreendo perfeitamente que assim fosse. Incomodar-me para quê? Para quê sair de um lugar agradável e quentinho, de um nicho acolhedor, onde tudo me era oferecido gratuitamente? A minha mais antiga recordação é do frio, da neve e do gelo nas valetas, da geada nos vidros das janelas e do suor gelado das paredes verdes da cozinha.
Porque vivem as pessoas em agrestes climas das zonas temperadas, como erradamente lhes chamam? Porque são naturalmente idiotas, preguiçosas, naturalmente cobardes. Até cerca dos dez anos nunca imaginei que existissem países quentes, lugares onde não era preciso suar para ganhar a vida nem tremer de frio e fingir que isso era tónico e revigorante. Onde há frio há pessoas que se esfalfam a trabalhar e que, quando têm filhos, lhes pregam o evangelho do trabalho, o que, no fundo, não é mais do que a doutrina da inércia. Os meus progenitores eram inteiramente nórdicos, o que equivale a dizer idiotas. Perfilhavam todas as ideias erradas que jamais têm sido expostas. Entre elas contava-se a doutrina do asseio, para já não falar da da honradez. Eram penosamente asseados, mas por dentro fediam. Nunca, nem uma única vez, tinham aberto a porta que conduz à alma; nunca, nem uma única vez, lhes passou pela cabeça dar um salto às cegas, no escuro. Depois do jantar, os pratos eram imediatamente lavados e arrumados no armário; o jornal, depois de lido, era muito bem dobrado e arrumado numa prateleira; a roupa, depois de lavada, era passada a ferro, dobrada e guardada em gavetas. Preparava-se tudo para amanhã, mas o amanhã nunca chegava. Õ presente era apenas uma ponte, e eles continuam a gemer, como o mundo geme, e não há um idiota que se lembre de atirar a ponte pelos ares». In Henry Miller, Trópico de Capricórnio, 1939, Editorial Presença, colecção Obras Literárias Escolhidas, 2009, ISBN 978-972-234-097-7

Cortesia de EPresença/JDACT