«(…) O rosto de Rashid era inconfundível: os olhos esverdeados,
que brilhavam no meio da pele escura, perturbavam e encantavam ao mesmo tempo.
Mais ninguém na família fora presenteado com um olhar daqueles, só a mãe dele,
Tarube, tivera um avô com a mesma cor de olhos exótica. Rashid trouxe-a até à
mesa. Também os outros lhe dirigiram semblantes amigáveis, excepto Zubaida, que
mal parecia dar conta do que se passava à sua volta, e naturalmente Abu, o
irmão mais velho, que, ao contrário de Rashid, nunca desenvolvera simpatia por
Aischa. A jovem contudo não se incomodou, pois estava habituada, tanto à apatia
da mãe, como à animosidade de Abu. Arriscou um olhar a Amir e, perante a avidez
que transparecia no rosto do noivo, deu graças a Alá por o véu lhe esconder o
rubor que se lhe apoderava das faces. De resto, o rapaz agradou-lhe: não
obstante a ansiedade com que a fitava, o brilho dos olhos negros espelhava a
bondade do seu coração.
Aischa
sentou-se entre Rashid e o pai. Achava-se incapaz de proferir palavra, enquanto
se conversava sobre os preparativos do casamento. Assim que Malik Ibn Danaf
considerou o momento oportuno, dirigiu-se-lhe com as palavras: autorizo Amir a
admirar a tua beleza! Ela desfez-se do véu, na esperança de que ninguém notasse
a tremura das suas mãos. Os caracóis negros espalhados pelos ombros eram
encantadores, mas o rubor regressara com mais intensidade às faces delicadas e
as longas pestanas cobriam o brilho dos seus olhos, onde se reuniam vários tons
de castanho, como numa pedra de âmbar. Gerara-se silêncio e ela perguntava-se
se estariam à espera que dissesse alguma coisa. Porém, o medo que tinha em
desiludir Amir mantinha-a muda, quase a asfixiava. De repente, o rapaz falou: ouvi
dizer que Aischa canta muito bem e gostaria de a ouvir. Certamente, respondeu o
pai dela e mandou vir um alaúde. A moça sentiu um certo alívio, sabia que a sua
voz agradava. O alaúde chegou-lhe às
mãos e ela cantou um muwashshahat, um género musical andalusino baseado
na repetição de estrofes. Estas tanto eram cantadas no árabe regional de
al-Andalus, como no dialecto latino da região. A melodia cantada pela moça
envolveu os versos do poeta Ibn Bassâm de Shantarin:
Porque é que não sentes piedade
por quem te devota tanto amor?
Por mais que te cante o meu fervor
vais-te, deixas-me o gosto da saudade.
Ó dona única da consolação,
tem dó! Não tarda a separação.
No
fim, foi tão elogiada, que os seus lábios se abriram num sorriso, mostrando os
dentes cintilantes. A descontracção permitiu-lhe demorar-se no rosto de Amir.
Os cabelos que o turbante dele cobria não brilhariam dourados ao sol, mas já há
algum tempo que ela não ligava a fantasias dessas. De volta ao recolhimento do
seu quarto, Aischa regozijava-se com o facto de lhe agradar o noivo que o pai
escolhera para ela. Na verdade, Amir agradava-lhe tanto, que ela se achava
incapaz de ter que esperar até Junho para se casar». In Cristina Torrão, A Cruz de
Esmeraldas, Edição Ésquilo, 2009, ISBN 978-989-809-261-8.
Cortesia
de Ésquilo/JDACT