O Assassin de Lisboa 1142-1143
Lisboa, Abril de 1142
«(…) Na mão direita, o mostrengo
levava uma arma e ao vê-la o coração de Mem falhou uma batida. Era a Lança de
Cristo! A relíquia de Sellium, que Afonso Henriques tanto procurara e que havia
sido entregue ao rei de Portugal em Hisn Abi Cherif! Como acabara nas mãos
daquele louco purulento e perigoso? Ainda siderado, Mem recordou que, depois da
batalha de Ourique, enquanto atravessava as campinas do além-Tejo com Zaida, a
caminho de Mértola, os dois haviam visto uma estranha figura a passar ao longe,
carregando uma lança. Seria o mesmo desvairado a quem todos chamavam Orimar? Embora
sem forma de o confirmar, Mem percebeu o poder extraordinário do sanguinário
líder dos Mantos Vermelhos e o simbolismo das mortes que praticava. Orimar, a
Pústula, matava cristãos e moçárabes com a mesma lança com que Cristo fora
ferido mortalmente na cruz! Assustado, o almocreve regressou a casa e disse,
Ália, a Élia e a Ília que não podiam ficar ali nem mais um dia, pois os
impiedosos canalhas acabariam por matá-las. E foi por isso que os quatro
fugiram à pressa, chegando a Coimbra uma semana mais tarde, onde o almocreve
nos revelou o que vira em Lisboa.
Meus queridos filhos e netos, a
princesa Zaida, há muitos anos, costumava dizer que tudo estava ligado. Foi
isso que eu senti, quando revi o almocreve Mem. A Lança de Cristo, que eu
perdera em Ourique, ligava-nos a Lisboa, a cidade que meu pai tanto desejava conquistar.
O nosso passado apontava para o nosso futuro.
O Assassin de Lisboa 1142-1143
Coimbra,
Abril de 1142
No dia em que Mem chegou a Coimbra,
Chamoa encontrava-se sentada numa manta, num campo próximo do Mondego, perto do
local onde as barcaças atracavam. De cabelo solto, dalmática aberta e decote ao
vento. Gostava de vir ali, ver o rio correr, mas naquela soalheira tarde o calor
que lhe aquecia o corpo contrastava com a brisa que lhe arrefecia o coração. Pêro
Pais, seu filho mais velho, que estava junto a ela e ao seu amigo Gualdim Pais,
descrevera-lhe a reunião matinal onde Egas Moniz e João Peculiar haviam lido uma
curta missiva papal, na qual Inocêncio II voltava a incentivar o casamento de
Afonso Henriques com Mafalda da Sabóia. Como sempre, o príncipe recusara, mas o
mero regresso daquela ideia, pela pena do papa, era um ensombramento. Não me
querem rainha...
Durante mais de um ano, Chamoa escondera
a intriga de Compostela que Afonso VII lhe soprara em Valdevez. Porém,
perante tanta pressão a favor daquele absurdo matrimónio, sentia a sua lealdade
cega a Afonso Henriques a deteriorar-se. Eles, queriam afastá-la, dissera-me ela
na véspera, e nem um primogénito real nascido nas suas entranhas os continha.
Angustiada, Chamoa já se imaginava banida e num impiedoso exílio, e gemeu. Que tendes,
minha mãe?, perguntou Pêro Pais. Chamoa examinou-o, orgulhosa. Como tinha crescido,
como estava bonito, com uns caracóis revoltos e negros, idênticos aos de seu pai,
Paio Soares! Aos quinze anos, era impossível uma mãe não se sentir feliz com um
filho assim, que gerava tanto a admiração dos homens, pela valentia e habilidade
guerreira tão prematura, como a das mulheres, pelo charme e atrevimento tão inesperados.
Mas, no seu primogénito, o que Chamoa estimava acima de tudo era a dedicação permanente
a ela e a Afonso Henriques, como se o único propósito de Pêro Pais fosse mantê-los
juntos e unidos para sempre.
Vão-no casar com a outra. Que será
de mim? Pêro Pais repetiu o que sempre dizia o príncipe de Portugal não seguia
os conselhos de Egas e de Peculiar. Tendes a fé própria dos mais novos, comentou
Chamoa. Mas o mundo é mais sombrio do que pensais. Pêro Pais baixou os olhos,
incomodado com o reparo. Como se fosse possível que um rapaz cujo pai morrera às
mãos de Afonso Henriques, por causa do amor que ambos tinham a Chamoa, fosse um
tolo ignorante! Afonso Henriques ama-vos, minha mãe! Desde que vos haveis juntado
nunca vos traiu!, proclamou ele». In Domingos Amaral, Assim Nasceu Portugal,
Oficina do Livro, Casa das Letras, 2017, ISBN 978-989-741-713-9.
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