A intriga de Compostela 1140-1142
Tui. Maio de 1140
«(…) O meu sogro não recuperara
ainda da estocada maldosa da esposa, por isso nem tugiu. Já Pêro Pais, sempre desafiador,
ignorou ostensivamente a pergunta imperial e cochichou com o seu amigo Gualdim.
Perante tamanha exibição de desrespeito, Elvira sentiu-se na obrigação de intervir
e exclamou: minha filha é uma tola! Podia ter tanto, se aqui estivesse… Na primeira
frase, havia a crítica constante e ressequida da mãe contra a filha. Contudo, a
segunda era mais perturbadora, pois insinuava que Chamoa, se o quisesse, poderia
ser amante do imperador, o que fez crescer os temores de avô e neto, ambos
conhecedores dos desejos de Afonso VII. Não compreendo o fascínio dela por meu primo...,
murmurou este. Temos é de lhe fazer a guerra!, rugiu o Trava, furioso.
Estas bélicas palavras tiveram o condão
de enervar Pêro Pais, que imaginou o naco de javali a voar de encontro ao focinho
de Fernão Peres. Não podendo executar tai gesto, lembrou a batalha de Cerneja, onde
Afonso Henriques havia batido as tropas de Afonso VII e do Trava. Quereis
repetir?, perguntou o esperto rapaz. Ao dizê-lo, apresentou a travessa de carne
de javali, como se fosse a esta que se referia e não à derrota, mas o seu instante
de gozo foi abruptamente quebrado, quando o imperador lançou uma inesperada atoarda.
Afonso Henriques é quem diz que é? Afonso VII olhava directamente para o pai de
Chamoa e de imediato este empalideceu. Foi um momento fugaz, pois Gomes Nunes, com
a capacidade que desenvolvera de fazer-se passar por tonto, logo perguntou com extrema
candura: virgem Santíssima, de que falais? O imperador da Hispânia serviu o veneno
a conta-gotas. Palavra a palavra, lá foi desfiando a safadeza, numa voz aveludada.
Recordou o nascimento do filho aleijadinho do conde Henrique e de dona Teresa, os
pais muito tristes, a entrega à família Moniz, os banhos de água em Cárquere, a
melhoria do petiz que nunca via os pais, o suposto milagre, a igreja a Nossa Senhora
que meu pai mandara construir. Uma pancada atrás da outra, mas com bons modos. E
ninguém abriu a boca a não ser Elvira, que, quando o imperador referiu o nome da
pequena povoação onde havia um mosteiro, comentou em voz baixa: se as pedras de
Cárquere falassem...
Gomes Nunes olhou-a, irritado, enquanto
o rei leonês lançava mais dúvidas antigas. Minha mãe, Urraca, estranhou, quando
viu Afonso Henriques em Astorga, no dia da morte do conde Henrique. Era
aleijadinho? Não parecia... Sobrevoando o silêncio alheio, o imperador afirmou que
só Egas Moniz sabia a verdade e foi aí que Pêro Pais o questionou: que verdade?
A maliciosa Elvira alvitrou, mais uma vez em voz baixa: Egas Moniz vivia perto
do mosteiro das crianças... Sempre com um leve sorriso no rosto, mas com a perfeita
noção de que proferia uma enormidade aterradora, o imperador dos Cinco Reinos interrogou
a mesa com ênfase: terá Egas Moniz trocado o aleijadinho? Foi como se tivesse passado
uma rabanada de vento frio na sala, que a todos congelou. Aproveitando o momento
dramático que conseguira gerar, o imperador acrescentou mais interrogações
tenebrosas. Saberia Chamoa dessa história? Ela fora casada com Paio Soares, o antigo
alferes do conde Henrique. Alguma vez o seu primeiro marido lhe teria falado na
troca de crianças? Ou seria mais uma pobre vítima de um miserável embuste?
Estaria mesmo casada com o verdadeiro Afonso Henriques? Mais veneno aqui e ali.
Por fim, o imperador da Hispânia pousou a faca com que antes sulcara a carne do
javali e anunciou que estava disposto a adiar por uns meses a exigência de vassalagem
de Gomes Nunes. Até que Chamoa nos esclareça...» In Domingos Amaral, Assim Nasceu
Portugal, Oficina do Livro, Casa das Letras, 2017, ISBN 978-989-741-713-9.
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