Guimarães. Dezembro de 1130
«(…) Zaida e Fátima, duas
excêntricas raparigas que nos fascinavam, eram netas do último califa de
Córdova e estavam há catorze anos prisioneiras em Coimbra. Se eu casasse com
uma delas, os nossos territórios seriam muito mais vastos!, exclamou Afonso
Henriques. À volta da mesa, ninguém o apoiou. Tal como, quatro décadas antes, o
casamento do imperador Afonso VI com a princesa Zaida de Sevilha fora
considerado uma inaceitável blasfémia, também qualquer futuro enlace entre o
príncipe de Portugal e uma princesa de Córdova era visto com forte suspeita e
julgado uma quimera inviáve1. Só se fosse com a Fátima, a Zaida está cativada! A
súbita indignação de Gonçalo Sousa não me surpreendeu: ele há muito que se
dizia enamorado da mais nova das princesas mouras, com quem queria casar. Alto
mas feio, com um nariz demasiado largo, um queixo volumoso e umas sobrancelhas
peludas, Gonçalo combatia a sua desvantagem física com uma impetuosidade
atrevida e um humor brejeiro. Sempre que chegava ao pé de algum de nós,
perguntava, então, tudo espeta?, o que provocava risos imediatos.
Além disso, apanhava agora o
cabelo escuro num rabo-de-cavalo, o que lhe dava um toque de rebeldia e um ar
desafiador que seduzia muitas mulheres, apesar de ele dar sempre a primazia à
princesa Zaida, que jurava nunca esquecer. Serei o seu primeiro homem!,
exclamou, orgulhoso. Um pouco mais nova do que nós, Zaida ainda era virgem e Gonçalo
vangloriava-se da promessa que ela lhe dedicara de ele ser o seu desflorador,
desde que a levasse de volta à sua Córdova natal. Com a Fátima não me posso casar...,
afirmou o príncipe, irritado. Recordei-me do feitio quezilento da irmã mais
velha de Zaida, sempre agreste e combativa, que proclamava odiar cristãos. Essa
cortava-vos a gaita!, avisou Gonçalo. Este comentário jocoso provocou uma
bem-vinda gargalhada geral, mas também a desaprovação de Teresa Celanova e um aviso
sobre a inadmissibilidade de tal palavreado. Perante a reprimenda, aquele
rezingão justificou-se depois de beber mais um gole do saboroso vinho da Galiza
que a esposa de meu pai nos servira: bela Teresa Celanova, desculpai-me, mas
estou farto de tanto desgosto! Falemos de festas! Como será o Natal por cá? Tenho
soldadeiras novas com quem me rebolar? Ou preciso de marchar a Coimbra, para
convencer a Zaida?
Aquelas
constantes referências às princesas fizeram-me também recordar a sagrada
relíquia da Terra Santa que os templários de Soure procuravam há vários anos. Há
novidades do Ramiro?, perguntei. Afonso Henriques abanou a cabeça. Ramiro, o
filho bastardo de Paio Soares que se alistara na Ordem do Templo de Salomão,
fora encarregue pelo príncipe de descobrir o paradeiro do valioso tesouro de
Jerusalém, mas não obtivera quaisquer resultados na sua secreta missão. Além
disso, Ramiro fora também incapaz de encontrar a misteriosa Sohba, desaparecida
tempos antes. Tia das princesas Zaida e Fátima e filha do último califa de
Córdova, Sohba era a mais velha representante da família Benu Ummeya, antiga
detentora do trono daquela cidade islâmica. Por obscuras razões que ainda
desconhecíamos, a velha mulher de negro era a única a conhecer o esconderijo da
relíquia sagrada, mas evaporara-se num golpe mágico». In Domingos Amaral, Assim Nasceu
Portugal, A Vitória do Imperador, Casa das Letras, LeYa, 2016, ISBN
978-989-741-461.
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