Serra
Morena (perto de Córdova). Fevereiro de 1133
«Ao
entrar pelo portão do Castelo de Hisn Abi Cherif, o cordovês Abu Zhakaria comoveu-se
ao reparar nos canteiros de flores que cercavam a pequena torre de menagem. Tal
corno da última vez que ali estivera, sete anos antes, continuavam repletos de belas
e coloridas plantas, sinal de que alguém os cuidava em permanência. Fora naquele
local que Taxfin, segundo marido de Zulmira, o obrigara a prometer que traria de
volta Fátima e Zaida, prisioneiras dos cristãos. Desconsolado, o cordovês recordou
o seu falhanço. Os fundos que Taxfin lhe colocara ao dispor, tão vastos há sete
anos, haviam sido consumidos a alimentar uma companhia de mercenários que, sendo
exímia a matar cristãos em campo aberto, não possuía força suficiente para invadir
Coimbra e resgatar as princesas.
A somar à fraqueza financeira, a situação
política em Santarém alterara-se. A lendária paixão de Abu Zhakaria por Fátima,
geradora de admiração e respeito no povo, tinha como alto preço a desconfiança com
que o miravam os influentes da cidade. Para forte azar, o seu único aliado, o governador
de Santarém, morrera no final do ano passado. O posto de wali de Santarém
permanecia vago. Ali Yusuf, que governava o califado a partir de Marraquexe, não
parecia preocupado em nomear sucessor, vivendo Santarém ao sabor dos interesses
das principais famílias da região, para quem Zhakaria não passava de um inútil subversivo.
Abandonado pelos mercenários a quem deixara de pagar e sem apoios relevantes na
cidade, Abu depressa percebera que teria de regressar a Córdova, à procura de novos
aliados, pois os fossados de Peres Cativo aproximavam-se perigosamente de Santarém,
aumentando o alarme social.
Quando um dia ouviu, no conselho municipal,
alguém sugerir que se fizesse a paz com Afonso Henriques, pagando-lhe até um tributo,
o cordovês suspeitou de que os assustados notáveis da cidade facilmente o entregariam
ao príncipe de Portugal, como prove de boa vontade. A fúria perdera-se, concluíra
Zhakaria. No Verão anterior, degolara uma companhia inteira de galegos, deixando
nove deles empalados junto ao rio Nabão e enviando o décimo até Soure, numa
provocação maliciosa aos cristãos. Com essa exibição bárbara e fútil, o seu prestígio
em Santarém ensombrara-se e, mal faleceu o governador, viu-se solitário e cercado
de hostilidade.
Desanimado,
metera-se a caminho de Córdova, sabendo a tristeza que iria causar a Fátima mal
ela soubesse do seu abandono. Tantos anos separados e ainda a amava! Desde que ela
ficara refém, apenas a vira por duas vezes, em Soure e em Coimbra, quando estivera
bem perto de resgatar as duas irmãs mouras. Apesar disso, o amor resistia dentro
dele e recordava com intensidade a profecia de Tarfin de que um dia Zhakaria se
casaria com Fátima ali, em Hisn Abi Cherif! Pouco antes de chegar ao portão do belo
e originai castelo de arenito vermelho, perdido nos contrafortes da serra Morena,
passara perto de um pequeno mausoléu, o túmulo dos Benu Ummeya, onde sabia repousarem
os restos mortais de vários elementos da família. Lá estavam enterrados Hixam III,
o último califa de Córdova, bem como o seu filho, Hixam de Hisn, primeiro marido
de Zulmira e pai de Fátima e Zaida. E lá estavam também Taxfin, antigo governador
de Córdova e segundo marido de Zulmira, bem como esta última, que, depois de assassinada
em Coimbra, fora para ali trazida pelo almocreve Mem». In Domingos Amaral, Assim Nasceu
Portugal, A Vitória do Imperador, Casa das Letras, LeYa, 2016, ISBN
978-989-741-461.
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