«(…) O fidalgo não se sentou nem
agradeceu a lhaneza. Com as mãos atrás das costas deu meia dúzia de passos sem
destino pelo vasto salão que bem conhecia, olhou para o rio acanhado de naus e
caravelas, e só depois foi encostar-se a uma das janelas laterais viradas a
sul, para daí observar, contemplativo, o movimento dos pedreiros nas obras do
mosteiro dos Jerónimos, à beira-Tejo. Como estava diferente aquele local! Diogo
mal se lembrava de que antes de ser lançada a primeira pedra para a construção
do monumento, a seis de Janeiro de mil quinhentos e dois, dia dos Reis Magos,
existira ali uma capela mandada erigir anos antes pelo infante Henrique, em
honra da Virgem de Belém, e que chegara a servir de aconchego religioso aos freires
da Ordem de Cristo até que o papa Alexandre VI, através da bula Eximiae Devotionis Affectus, decidiu
autorizar Manuel I a converter a ermida e eremitério num mosteiro com igreja,
claustros e as oficinas necessárias. Do mesmo modo, sentia um estranho incómodo
por já não se recordar exactamente da fisionomia do antigo bairro de
marinheiros e pescadores que rodeava a velha igreja, das cores que o pintavam,
do seu constante alvoroço, da tradicional desordem entre as suas gentes e que tanta
vida dera àquele espaço até à demolição das respectivas casas, por decreto
régio de vinte e três de Junho de mil quatrocentos e noventa e seis. Em que
meditais? Acaso não é do vosso agrado a magnificência da obra que daqui vedes?,
perguntou, irónico, o monarca, acabado de entrar silenciosamente no salão.
É muito bela, meu rei e senhor!,
respondeu o fidalgo, surpreendido, antes de os dois homens se enternecerem num
apressado gesto de comunhão. Em cada hora que passa mais grandiosa fica. Por
alguns momentos, Manuel I e Diogo Pacheco mantiveram-se em silêncio, admirando,
lá longe, o movimento dos operários e a arquitectura do mosteiro que, depois de
concluído, e se Deus viesse a querer, haveria um dia de funcionar como sede da
Ordem de S. Jerónimo, vocacionada para a administração do culto mortuário da
dinastia real de Castela. Mas, para o monarca português, mais importante do que
instalar ali a ordem religiosa, em obediência a uma promessa antiga que tanto
agradara aos reis católicos do país vizinho, talvez fosse o facto de os
Jerónimos virem a converter-se no símbolo do seu poder absoluto. E por isso
desejava que o mosteiro superasse em grandiosidade obras tão admiráveis quanto
as pirâmides do Egipto, os colossos romanos e o próprio templo de Salomão.
Aliás, Manuel I, cuja subida ao
trono ficara a dever-se à morte prematura do sobrinho infante Afonso, em
consequência da queda de um cavalo enfurecido, tinha a presunção de ter vindo
ao mundo para reinar, servir a Deus e por vontade de Deus. E até se remetera à
ideia de que, apesar de ter ocupado o sexto lugar na linha de sucessão
dinástica, chegara ao ceptro e à coroa porque ninguém seria capaz de
desempenhar melhor e mais eficazmente o combate contra os infiéis, em defesa da
libertação dos lugares santos. Era esse o seu desígnio. Por este andar, com a
ajuda de Deus, o meu mando e o esforço dos pedreiros, o mosteiro ficará pronto
antes do tempo, comentou o soberano, interrompendo a abstracção de Diogo. O
fidalgo estremeceu ligeiramente, alisou o cabelo com os dedos e comentou: sempre
considerei aquele sítio o mais apropriado de todos para a construção do templo,
dado que se situa às portas do mar. Mas, pensando melhor, não achais que irá
ficar longe da cidade? Descansai dos vossos temores, bom amigo, porque a cidade
ainda um dia virá a estender-se até aqui, retorquiu o monarca, com
indisfarçável soberba. Deus vos ouça, Alteza. Ad gloriam!
Após trocarem algumas palavras de
circunstância sobre o estado do tempo e a boa saúde física de cada qual, os
dois homens deslocaram-se de braço dado até outra janela de frente para o Tejo,
onde o rei gostava de ver o Sol morrer em cada tarde. De resto, Manuel I tinha
o hábito de passar parte do seu tempo nesse salão, grande e luxuoso, em cujas
paredes mandara colocar um número considerável de quadros de autoria de pintores
ingleses, florentinos e genoveses, além de tecidos de seda pintados na Índia
por artistas de indiscutível talento. O mobiliário, constituído por peças da
alta Idade Média e outras de vocação renascentista, assentava quase todo sobre
grossas tapeçarias persas, de intensas e diversificadas cores. Pouco ou nada
fazia sentido na riquíssima sala, mas era assim, na mais insólita desarmonia e
ausência de bom gosto, que o rei adorava viver e praticar o seu augusto mando. Quando
chegarão as caravelas com os presentes para Sua Santidade?, perguntou
subitamente Diogo Pacheco, ao mesmo tempo que olhava enternecido para o rio,
onde se espalhavam centenas de naus, galés, batéis e embarcações de pequeno e
médio portes.
Se Deus ajudar os marinheiros, e
o vento e as ondas continuarem de feição, iremos tê-las cá no próximo mês. Achais,
meu senhor? Tenho a certeza. O monarca deu uma palmada nas costas do fidalgo para
logo de seguida o convidar a ocupar um banco de pinho, enquanto ele, na
lentidão que lhe era própria, se foi sentar na sédia que só o rei podia
preencher. Depois, já recostado no espaldar coberto por um manto de cetim
vermelho, cruzou as pernas, começou a fazer pequenos círculos com o pé
desapoiado, entreteceu os dedos das mãos grandes e poderosas e, calmo como as
águas do Tejo nesse dia, prosseguiu a conversa. Como podeis observar por toda a
cidade, o povo aguarda com o maior entusiasmo a chegada das naus. Mas ninguém
sabe, nem eu mesmo, que coisas trazem. Sei apenas que vêm carregadas de grandes
riquezas e de animais estranhos para então levarmos tudo ao papa... Tudo!?,
interrompeu, admirado, Diogo Pacheco. ... Bom, tudo não. Quase tudo, corrigiu o
rei, apressadamente, antes de continuar: quero oferecer a Sua Santidade, ainda
que tanto não mereça, presentes que nunca ninguém lhe deu. E como ele é mais
dado ao luxo do que a Deus, e mais vigilante da vida material do que da vida
espiritual, certamente ficará muito contente. E eu quero deslumbrá-lo, distinto
amigo, quero fazê-lo feliz!» In José Manuel Saraiva, Aos Olhos de Deus,
Oficina do Livro Editor, 2008, ISBN 978-989-555-364-8.
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