«A magnífica embaixada do monarca
Manuel I ao papa Leão X. Os pecados que o Império não conseguiu esconder. Uma
história de amor que venceu a fé dos homens. 1514. Na época áurea dos
Descobrimentos Portugueses, Manuel I toma a decisão de enviar ao papa Leão X
uma grande embaixada, demonstração viva do seu poderio temporal. Diogo Pacheco,
fidalgo da corte, amigo pessoal do rei Venturoso, é encarregado pelo monarca de
compor e proferir a Oração de Obediência ao Sumo Pontífice, o momento alto da
embaixada. A comitiva parte de Lisboa em cinco embarcações com um tesouro valiosíssimo
e animais exóticos trazidos de África e da Índia. Após conturbada viagem o
cortejo chega a Roma, onde o papa preparara uma sumptuosa recepção com a
presença das mais altas figuras profanas e religiosas da época. No meio do
fausto da corte portuguesa e da Cúria dos Medici, contrastante com a dor e a
miséria do povo sofredor, ascende à figura de símbolo o amor regenerador de
Diogo pela bela judia, Raquel Aboab, a quem aquele salvara da fogueira e da
sanha intolerante do antijudaísmo reinante. A época de ouro da história do mundo
esconde segredos e pecados inconfessáveis das grandes figuras que comandam os
destinos do mundo. Entre a fé e a cegueira do poder, a aparência e a essência
da condição humana, o sentido de missão e a vaidade só o amor poderá ser
redentor. Aos olhos de Deus as personalidades da história não ficarão impunes.
E Deus não jogará aos dados.
Naquela manhã de Novembro de mil
quinhentos e treze, cinzenta e fria, o rei Manuel I mandou chamar aos Paços da
Casa da Mina um dos mais distintos fidalgos da sua corte: Diogo Pacheco. Queria
informá-lo de que decidira incluí-lo na embaixada que dentro de algumas semanas
iria enviar ao papa Leão X e, ao mesmo tempo, pedir-lhe para que fosse ele a
proferir na Santa Sé a oração de obediência, sempre devida ao Sumo Pontífice. Manuel
I reconhecia que Diogo Pacheco, além de gozar de boa aparência e compostura,
tinha a fama e o benefício de ser um notável jurisconsulto e latinista, pelo
que na ideia incontestada do soberano não havia ninguém no reino português com
tantas virtudes quanto aquele homem para desempenhar um papel de tão grande
responsabilidade junto de Sua Santidade. Mas não foram apenas as qualidades
intelectuais e o aspecto físico do fidalgo que presidiram à escolha do seu
nome. A circunstância de o rei decidir nomeá-lo para se dirigir ao papa, na cúria
de Roma, em representação de Sua Alteza o Rei de Portugal e dos Algarves de Aquém
e de Além Mar, Senhor da Conquista, da Navegação e do Comércio da Etiópia, Arábia,
Pérsia e Índia, ficou igualmente a dever-se ao facto de o soberano cultivar por
Diogo Pacheco, desde os primeiros anos da juventude, um desajustado, e por
vezes enigmático, sentimento de estima pessoal.
Aliás, a nobreza e o clero,
porventura até mais o clero do que a nobreza, não se cansavam de censurar,
naquela dissimulada cobardia que lhes era própria, a relação demasiado íntima
entre os dois homens. Uns garantiam que o rei e o súbdito tinham o hábito de se
encontrar a sós num discreto aposento da sede da coroa, instalada, havia poucos
anos, num palácio com galerias de inspiração renascentista, de frente para o
Tejo; outros asseveravam que tais encontros incluíam a participação de donzelas
de fina linhagem mas de duvidosa conduta. Verdade ou mentira, certo é que nunca
ninguém ousou pronunciar na rua uma palavra sobre o assunto, muito menos
levantar suspeitas públicas, por mais ténues que se revelassem, acerca do
comportamento alegadamente desviante de Sua Alteza Real. Só no conforto da
privança dos eclesiásticos em igrejas e nos mosteiros de Lisboa, ou nas festas
de bebedeira e luxúria que os nobres organizavam nas suas residências, se
comentava, mas sempre com a máxima cautela e total discrição, que o rei e o
fidalgo mantinham uma afinidade de contornos imprecisos. E até se dizia, como
forma de provocação ou em jeito de graça, que Manuel I decidira abandonar os
medievos e desaconchegados paços da Alcáçova do castelo para se instalar nos
antigos armazéns da Casa da Mina, em cujo interior, entretanto recuperado e
transformado num palácio para acolher a sede da monarquia, persistia o perfume
lúbrico da canela e o aroma estimulante da pimenta...
Mas isso acontecia porque tinha
sido ali, quando o novo lar da coroa era ainda um entreposto, que se haviam guardado
as especiarias provenientes das terras da Guiné, da Índia e do Brasil, bem como
outros produtos de luxo, designadamente o algodão e o marfim. De qualquer modo,
por ódio ou maledicência, com razão ou sem ela, as dúvidas sobre o estilo de
convivência entre o monarca e o fidalgo tinham-se instalado na cidade. É claro
que ambos contribuíam, e muito, para o falatório de clérigos e nobres. Em
certas ocasiões, em público ou em privado, Manuel I e Diogo Pacheco raramente
evitavam um cumprimento de exagerado afecto. Às vezes davam as mãos,
mantinham-nas apertadas por alguns instantes, segredavam qualquer coisa e só
depois viravam costas. Noutros encontros, observados com frequência por membros
da corte, Diogo chegava mesmo a aconchegar a aljuba ao rei, aproveitando a circunstância
para lhe massajar os ombros com a ponta dos dedos, ao jeito de quem pretende
sacudir das vestes um indesejável cisco.
Claro que nenhum destes gestos
podia, por si só, garantir a existência de qualquer ligação emocional entre os
dois homens, muito menos justificar o aleive de que ambos eram alvo por parte
dos eclesiásticos, quase todos perversos, todos sinistros, e de alguns nobres
que nunca se haviam acomodado à ideia de o monarca não ter levado tão longe
quanto os reis católicos de Castela a perseguição aos judeus. O que não era
normal, e disso todos tinham motivo para desconfiar, é que um monarca privasse com
um fidalgo, por mais ilustre e dedicado que ele fosse, como Manuel I o fazia
com Diogo Pacheco. Para todos os efeitos, um rei era um rei; um súbdito era um
súbdito. Porque se assim não fosse nem Deus no Céu, nem o papa na Terra, tinham
perdido tempo a estabelecer e a regular o princípio inelutável da diferença
entre os homens. E entre o soberano e o vassalo mal se notava essa imperativa e
sagrada dissemelhança. Por isso, algum mistério havia... Logo que entrou nos paços
reais, Diogo Pacheco foi imediatamente conduzido pelo privado do rei ao salão
nobre do palácio. Sentai-vos, senhor. Sua Alteza Real não demora, declarou o
valido num tom de amável simpatia, antes de se retirar e de fazer um respeitoso
gesto, inclinando a cabeça». In José Manuel Saraiva, Aos Olhos de Deus,
Oficina do Livro Editor, 2008, ISBN 978-989-555-364-8.
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