«(…) Quando o italiano se cansou
ou quando já não sabia mais como se explicar, eu e o meu tio olhámo-nos para
confirmar que tínhamos entendido. O italiano tocava e cantava em bailes. Tinha
um piano avariado e alguém lhe dissera que, ali, poderíamos consertá-lo. Com o
italiano entre nós, atravessámos a carpintaria e a entrada, caminhámos até à
rua e, no topo de uma carroça puxada por duas mulas cansadas, estava um piano
de cauda, a reflectir as nuvens no seu brilho negro, atado por cordas que o
envolviam. Antes que eu conseguisse dizer alguma coisa, o meu tio olhou para o
italiano e, com gravidade, estendeu-lhe a mão e disse: pode deixar que nós
consertamos-lhe o piano a tempo de tocar no baile. O italiano ignorou a mão do
meu tio, sorriu e, virando-se para mim, disse que o baile seria no sábado à
noite. Tínhamos três dias. Virei-me para o meu tio para discutir a decisão, mas
fiquei a meio da primeira palavra porque ele tinha já virado as costas e,
contornando poças de óleo do mecânico de motorizadas que ficava um pouco mais
acima, caminhava apressado na direcção da taberna. Mudo, olhei para o italiano,
encolhi os ombros num instante de incompreensão mútua e, com a mesma pressa, o
meu tio saiu da taberna, liderando um grupo de homens esfarrapados, trôpegos,
velhos, tortos e aleijados. Sob as ordens do meu tio, os homens começaram a
desatar o piano. Foi o meu tio que abriu completamente o portão da oficina e
que, com um salto, subiu para cima da carroça e começou a empurrar lentamente o
piano, que deslizava nas suas pequenas rodas para os braços dos homens.
Aguentem aí. E desceu para ajudá-los.
O meu tio contou até três e, num som do interior do peito, disse: upa. Nesse
momento, levantaram mais o piano e deram passos que arrastaram o som da poeira
no chão. Carregavam o piano como se estivessem a carregar o mundo inteiro. Os
corpos dos homens, agarrados ao piano, e as suas pernas, dobradas pelo peso,
eram um animal negro, como uma aranha. As suas vozes, abafadas pelo peso: não largues
agora, empurra para a tua esquerda: rodeavam o piano. Atravessaram a entrada da
oficina e dirigiram-se para a carpintaria. Havia homens que entravam de costas
e havia outros que, de frente, levantavam o pescoço para os guiar. Assim que
desapareceram na porta da carpintaria, o italiano entregou-me um cartão: pensão
Flor de Benfica. Ainda eu tinha o cartão diante dos olhos, quando o italiano me
apresentou a mão. Estendi-lhe a minha e ele, veloz, apertou-me o pulso e
abanou-me o braço. Sorriu muito, limpou o verniz dos sapatos na parte de trás
das calças, subiu para cima da carroça e, com uma palavra em italiano, partiu
rua acima.
Quando os homens saíram, como se
tivessem visto o mundo todo entre as paredes da carpintaria, escondiam o
esforço num sorriso e batiam as mãos, como se as limpassem do pó, esfregavam as
mãos nas pernas das calças cheias de nódoas, como se as limpassem. O meu tio
vinha com eles, segurava o novelo das suas vozes. Saiu com eles pelo portão,
contornaram-me como se fosse invisível, deram passos na estrada de terra e
entraram na taberna. O meu tio pousou os cotovelos sobre o balcão de mármore e pagou
um copo de vinho a cada um dos homens. Era ainda de manhã. Eu estava sozinho e
parado na estrada, frente ao portão aberto da oficina. Tinha os braços
estendidos ao longo do corpo e um cartão abandonado numa das mãos. Pedaços de
vento traziam badaladas de sinos que assinalavam horas distantes. Tinha vinte e
dois anos, tinha os braços estendidos ao lado do corpo, nunca tinha consertado
um piano e não me conseguia imaginar a ser capaz de fazê-lo. Diante da porta da
sala, sem que parasse realmente, foi como se a minha mulher tivesse parado porque,
num único instante, uma imagem, inteira e nítida, suspendeu-se diante de si: a
Íris, pequena, sentada, com a boca aberta num grito constante; rodeada de
vidros partidos, jarros derrubados, bonecos de loiça sem cabeça; ao lado do móvel
de canto, tombado sobre o tapete, como um cadáver velho caído de bruços; e a Íris
com a mão levantada, aberta, com a palma da mão coberta de sangue que lhe
escorria entre os dedos. Em três passos de vidros a estalarem abafados sob a
sola das pantufas, a minha mulher segura-a por baixo dos braços e levanta-a no
ar. Os gritos da nossa neta rasgam as paisagens estampadas nos quadros das
paredes, cortam a pele do rosto da minha mulher e impedem-na de respirar.
Pronto, diz, enquanto abre a
torneira do lavatório sobre a mão da Íris, mas os gritos da menina são
reflectidos pelo espelho manchado de ferrugem e pelos azulejos brancos da casa
de banho. O telefone começa a tocar. Sobre a mesa de pinho: a gaveta de papéis riscados
e de esferográficas que não escrevem: sobre o napperon de renda: a madrinha da
minha mulher a escolher novelos de linha na retrosaria: ao lado da moldura
cromada: a fotografia que tirámos todos juntos no Rossio: o telefone grita. Com
a força do ferro, estende uma urgência constante, que se interrompe durante um
fôlego rápido, para voltar logo a seguir, com o mesmo pânico e a mesma
autoridade. O telefone continua a tocar. A Íris chora e grita. As lágrimas
desenham-lhe riscos de água quente sobre as faces vermelhas. A minha mulher
segura-lhe a mão debaixo da torneira aberta. O sangue dilui-se na loiça rachada
do lavatório e desaparece. Na palma da mão da Íris, um vidro enterrado numa
ferida. Num só gesto, com a ponta dos dedos, a minha mulher puxa-o e sente o
interior da carne. Pronto, pronto, diz, ao voltar a pousar-lhe a mão sob a água
fria. Os gritos da Íris tornam estridente a luz branca da lâmpada pendurada num
fio, tremem os frasquinhos de loções ordenados numa prateleira, entram na
banheira e arranham a superfície do esmalte com guinchos.
O telefone continua a tocar. Cada
toque é uma mão que agarra o corpo da minha mulher e o aperta, que agarra a sua
cabeça e a aperta, que agarra o seu coração e o aperta. Nos seus braços, a voz
da Íris começa a encontrar conforto e, lentamente, alguma paz. A minha mulher
fecha a torneira, enrola a mão da Íris numa toalha branca do bidé e, levando-a
ao colo, sai da casa de banho a correr e avança pelo corredor». In
José Luís Peixoto, Cemitério de Pianos, 2006, Bertrand Editora, Quetzal
Editores, 2009, ISBN 978-972-564-823-0.
Cortesia de QuetzalE/JDACT