«(…) As manhãs passavam com o meu
tio a contar histórias que, às vezes, repetia e que, às vezes, não terminava;
passavam sob as histórias que o meu tio contava e que eu, às vezes, não ouvia.
Enquanto trabalhava: martelos a bater, serras a atravessarem ripas, limas a
limar, lixas a alisarem tábuas: deixava de ouvir o meu tio para me fixar nos
sons da cidade que entravam pelas janelas e pela porta do pátio, como se
chegassem de muito longe: pregões, vozes perdidas, campainhas de bicicletas. Foi
o meu pai que me deixou a oficina. Em certos dias, quando vinha do mercado de
mão dada com a minha mãe, pedia-lhe: vamos à minha oficina. Se alguém me ouvia
e entendia, ria-se por eu ser tão pequeno e falar assim. A minha mãe não se ria
porque tinha sido ela que me ensinara a utilizar essas palavras. O meu pai
morreu longe da minha mãe, exausto, no mesmo dia em que eu nasci.
Durante toda a minha infância, em
certos serões, a minha mãe aquecia uma chocolateira de água e pedia-me para ir
ao quintal buscar uma folha de limoeiro. O nosso limoeiro tinha folhas grandes
e grossas, custosas de desprender-se e que faziam barulho no momento em que as
arrancava dos ramos mais baixos. A minha mãe lavava a folha e mergulhava-a
dentro da água a ferver para fazer o nosso chá. Era nesse momento que trazia
para o centro da mesa um embrulho de papel pardo que, lentamente, sob o meu
olhar, abria. Eram dois bolos que tinha comprado na padaria e que, com a ponta
da faca, cortava ao meio. Eu subia para cima de um banco e tirava duas canecas
do armário. Sentávamo-nos à mesa, mãe e filho, a comer as nossas metades de
bolo e a beber chá. A seguir, a minha mãe contava histórias que terminavam
sempre com o riso do meu pai. A minha mãe quase se ria ao explicar o riso do
meu pai.
Depois, a minha mãe dizia que o
meu pai era muito valioso. Havia então uma pausa. Silêncio. E a minha mãe
contava-me como, de certeza absoluta, o meu pai se orgulharia de saber que eu
iria tomar conta da oficina. Era nesse momento que falava da minha oficina: a
tua oficina, dizia, séria, a olhar-me nos olhos. A voz da minha mãe era frágil
e segura, era suave, era firme. A oficina esteve parada até ao dia em que o meu
tio se propôs tratar dela, pagando a pequena renda com que a minha mãe se
governava. Havia meses em que o meu tio, por desorientação ou por causa da
bebida, se atrasava a pagar. A minha mãe contava com isso e, para essas ocasiões,
poupava algum dinheiro no fundo da caixa da costura. Foram poucas as vezes em
que, depois de todos os prazos, determinada, teve de fazer as duas ruas que
separavam a nossa casa da oficina para reclamar a renda.
Quando o meu tio a via entrar, envergonhava-se,
baixava o rosto, pedia-lhe muitas desculpas sentidas e, quase sempre,
lacrimejava. Comecei a trabalhar com o meu tio poucos dias depois de fazer doze
anos. Nesses tempos de aprendiz, tentava compreender aquilo que me mandava
fazer entre a torrente de histórias incompreensíveis que contava. Aquilo que o
meu tio tinha para me ensinar era o pouco que conseguira aprender ao ver o seu
pai a trabalhar e aquilo que aprendera com os seus próprios erros e tentativas.
Com catorze anos, trabalhava já com mais perfeição do que ele e ensinava-lhe
coisas que ele nunca soubera ou que esquecera. Tinha catorze anos quando a
minha mãe ficou doente. Numa semana, conheciam-se-lhe todos os ossos e todas as
veias do corpo. A sua pele tornou-se amarelada. O seu olhar ficava parado em
pontos. Supliquei-lhe que não morresse. Pedi-lhe por tudo. Mas, passadas
algumas semanas, morreu.
Foi como se tivesse esperado
apenas por ver-me criado. Durante as semanas seguintes, o meu tio ficou em silêncio.
Numa manhã, começou a contar uma história que nunca mais terminou e o tempo
continuou a passar. Influído com as histórias que contava para si próprio,
raramente o meu tio ouvia as pessoas que chegavam, com passos pesados na terra
da entrada, e que, a qualquer hora, vinham encomendar trabalhos ou ver se
estavam prontos os trabalhos que tinham encomendado. Por isso, surpreendia-se
muito quando as via surgir na porta da carpintaria. Eufórico, rodeava-as a
falar alto e a sorrir. Essas pessoas, mesmo que não o conhecessem já, ignoravam-no
e dirigiam-se a mim. Foi exactamente isso que aconteceu na manhã em que chegou
o italiano. O bigode fino dançava-lhe sobre os lábios ao ritmo das palavras que
dizia. Enquanto falava, o bigode, fino, engraxado, assumia as formas mais
diversas: um til, uma linha, um ângulo recto, um arco.
Ao mesmo tempo, usava as mãos
limpas, lisas, brancas, e os dedos esguios, bem tratados, as unhas ligeiramente
compridas, para fazer gestos e, assim, esculpir no ar diante de si toda a espécie
de formas: um cavalo nobre com arreios de prata, salões com gravuras no tecto,
um piano. Em momentos repentinos, parava-se a investigar se o tínhamos
entendido e acertava os botões de punho com a ponta dos dedos ou depenicava as
golas brilhantes do fraque. Decidia então que não o tínhamos entendido e
continuava. Mas tínhamos entendido tudo. Talvez tudo. Desde que o italiano começara
a falar que a voz do meu tio foi esmorecendo, mais fraca, mais fraca, como se
descesse escadas, até que se calou completamente e, com o olho esquerdo arregalado,
ficou apenas a ouvir com interesse vivo e sincero». In José Luís Peixoto, Cemitério
de Pianos, 2006, Bertrand Editora, Quetzal Editores, 2009, ISBN
978-972-564-823-0.
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