Soure. Julho de 1132
«De madrugada, o Rato vestiu-se e abandonou
a casota de Ramiro. Este ainda dormia em cima do colchão e o pequeno templário sorriu,
enamorado. Gostava daquele bastardo bonito e musculado, cujo corpo amadurecera
com o exercício físico a que se obrigava. Uma vez por semana, praticavam aqueles
jogos proibidos em segredo, mesmo sabendo que arriscavam a condição de monges guerreiros.
Se Martinho, prior de Soure, os topasse, podiam ser expulsos da Ordem do Templo
de Salomão, mas a excitação era tanta que cegava. O magro e esguio Rato regressou
à casota que partilhava com o Peida Gorda. Ao entrar, riu baixinho perante o fortíssimo
ressonar do colega. Nem um exército de muçulmanos a entrar pela alcáçova de Soure
perturbaria o sono daquele balofo!
Estava já a enrolar-se na manta
quando ouviu vozes. Percorreu-o um arrepio de receio. Teria sido visto?
Manteve-se quieto, escutou uma correria agitada, um soldado batia à porta da casota
de Ramiro. Aterrado, pediu a Deus que não o denunciassem. A sodomia era um pecado
mortal, seria certamente expulso de Soure. Pior do que isso, Ramiro perderia a posição
importante que ali ocupava, o segundo na hierarquia, logo abaixo do mestre Jean
Raymond. Tenso e hirto, o Rato aguardou, enquanto a barafunda prosseguia. Nas casotas
em redor, ouviu cavaleiros a saírem para o terreiro e, cada vez mais inquieto, o
Rato viu o Velho abrir a porta e espreitar. Notando-o já desperto, o outro gritou:
Peida Gorda, toca a acordar! Chegou um cavalo com um morto... Há sarracenos na região!
Pouco depois, os três apresentaram-se
no centro do terreiro, onde Ramiro, já vestido com a sua cota de malha, examinava
um cadáver, enquanto Jean Raymond confirmava que o estranho cavaleiro chegara a
Soure degolado. A cabeça deve ter caído quando foi decapitado. O observador Ramiro
produziu uma conclusão imediata. É um galego. O Velho deu um passo em frente e perguntou-lhe:
como sabeis? O bastardo de Paio Soares apontou para as insígnias na sela do animal,
onde se viam as cores da família Trava. Ainda surpreendido, interrogou-se: o que
faz um homem de Fernão Peres tão longe de casa? O cavaleiro sem cabeça viera de
sul e, portanto, a sua morte acontecera em território muçulmano. Será um mensageiro?,
perguntou o Rato. Ramiro nem pestanejou quando o viu aproximar, não revelando qualquer
sentimento especial. O Rato notou, mais uma vez, que o seu amante era hábil a esconder
de terceiros a simpatia por ele. Era uma das coisas que o Rato amava em Ramiro,
a capacidade para a dissimulação, além dos braços fortes e das cristas ilíacas protuberantes.
Mensageiro de quem? E para quem?, perguntou o ríspido Ramiro.
Para
tirar aquilo a limpo, mestre Jean ordenou que se preparasse uma expedição. A sul
de Soure, existiam umas aldeias a poucas horas de cavalo, talvez alguém tivesse
visto o infeliz. O pequeno grupo de escolhidos foi liderado por Ramiro, e o Rato,
bem como o Peida Gorda e o Velho, juntou-se naturalmente a ele. Os quatro eram os
últimos sobreviventes do colectivo original que se formara seis anos antes, em Viseu,
cujo objectivo era procurar a relíquia da Terra Santa. Da última vez que havia estado
com Afonso Henriques, uns dias antes, em Coimbra, Ramiro sentira o seu
desapontamento. O príncipe encarregara os templários de Soure de encontrarem a bruxa
Sohba, a única que conhecia o mistério da relíquia, mas eles não o haviam
conseguido. A mulher de negro ou morrera, como Ramiro acreditava, ou nunca voltara
à caverna onde vivera alguns anos. Teria aquele galego, morto, alguma ligação à
velha bruxa? Foi decapitado por um alfange, garantiu o Velho». In
Domingos Amaral, Assim Nasceu Portugal, A Vitória do Imperador, Casa das
Letras, LeYa, 2016, ISBN 978-989-741-461.
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