sábado, 21 de outubro de 2017

Mentiras de Guerra. 1133-1134. Domingos Amaral. «A sua interlocutora ficou em silêncio algum tempo, como se estivesse a desenterrar da memória algo custoso. Depois disse: para cá não veio»

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Serra Morena (perto de Córdova). Fevereiro de 1133
«(…) A criada ainda ouvira falar dela, mas, anos mais tarde, Zulmira e as duas princesas haviam partido para Coimbra, acompanhando Taxfin, segundo marido de Zulmira, na primeira expedição bélica imposta pelo califa Ali Yusuf. Desde então, nunca mais se ouvira falar ali da misteriosa e azarada bruxa. Desapareceu. A guardiã de Hisn contou que o almocreve Mem, quando viera depositar no mausoléu o corpo de Zulmira, descrevera os seus encontros com uma mulher semelhante, sempre vestida de negro, que vivia perto de Coimbra e vigiava à distância as raparigas. Essa mulher chamava-se Sohba e o almocreve concluíra que era a tia das princesas. Pode ser que Mem esteja certo..., sorriu a idosa. Zhakaria recordou que haviam procurado Sohba em Santarém e nas redondezas, mas ninguém sabia dela. Talvez tenha morrido, sugeriu a criada de Hisn. O cordovês não acreditava, Sohba era uma mulher rija. Para onde poderia ir?, perguntou.
A sua interlocutora ficou em silêncio algum tempo, como se estivesse a desenterrar da memória algo custoso. Depois disse: para cá não veio. Córdova cheira-lhe a morte. Todos os familiares de Sohba tinham morrido, desde o pai, Hixam III, o último califa de Córdova, até ao irmão Hixam de Hisn, passando por uma filha que a criada nunca conhecera e que se dizia ter falecido jovem, sendo essa a primordial razão da loucura de Sohba. A criada apontou um olhar triste na direcção dos túmulos e comentou: uma grande desgraça abraçou os Benu Ummeya. Depois de um suspiro prosseguiu: quem larga um trono, como Hixam III fez, condena a família. A idosa acrescentou que o maldito Ali Yusuf não descansaria enquanto não os degolasse a todos. Já aviou Zulmira e Taxfin, só faltam as minhas meninas.
Com o olhar embaciado que sempre exibia, aconselhou Zhakaria: ide falar com Ismar. É andaluz e é fino, hábil e firme. Desde Taxfin que não se via governador tão bom em Córdova. De seguida, a velha criada descreveu ao cordovês o que se estava a passar na Andaluzia muçulmana, que sofria uma inesperada mutação. Sinto-o, pela primeira vez em muitos anos. Mesmo aquela mulher, que vivia em Hisn como uma eremita, notara o califado de Ali Yusuf em perda. O respeito ao trono de Marraquexe já não era o de outrora. Pelas taifas de Sevilha, Córdova, Mértola ou Badajoz corria já um claro, embora ainda ténue, rumor de revolta. Ismar sabe do que falo, avisou a criada. Incentivado por ela, Abu Zhakaria foi ao encontro daquele príncipe de Córdova, que viria a ser um dos mais ferozes inimigos de Afonso Henriques e do nosso futuro reino de Portugal.

Córdova. Fevereiro de 1133
Já vos esperava. O governador Ismar levantou-se ao ver Abu Zhakaria entrar no seu salão privado, situado no primeiro andar do magnífico Azzahrat, construído dois séculos antes pelo mais célebre califa da Andaluzia, o valoroso e sapiente Abd al Rahman III, aquele grandioso palácio destinara-se a albergar o detentor do trono de Córdova e a sua família, os seus infindáveis criados e o seu bem recheado harém. Mas, no presente, servia apenas de residência exclusiva do wali da cidade, embora permanecesse um esplendoroso edifício, onde se multiplicavam os claustros, os minaretes, os jardins interiores, as piscinas e uma quantidade incontável de quartos, salas e salões». In Domingos Amaral, Assim Nasceu Portugal, A Vitória do Imperador, Casa das Letras, LeYa, 2016, ISBN 978-989-741-461.

Cortesia de CdasLetras/LeYa/JDACT