Cochim
«(…) Pelos ossos de meu pai!,
exclama Fernão, incrédulo, recordando-se das dimensões e imponência da
construção, muito embora tivesse chegado a Diu aturdido da extenuante viagem da
carreira da Índia e, ocupado em buscar um rumo para a sua nova vida nos
escassos dias que ali passara, pouco ficara a conhecer da sua história. Fizestes
aquela fortaleza em apenas meio ano? Juro-vos pelos Evangelhos que é verdade,
pois laborei nela duramente! A fortaleza, pelo lugar onde se achava, era cousa
de tanta sustância para o serviço d’el-rei João III, que deu causa à inimizade
entre Nuno Cunha e o Martim Afonso Sousa. O governador queria ter a honra de fazer
aquela fortaleza, porém o capitão adiantou-se-lhe e tratou do negócio com
Bahadur. Fernão solta uma gargalhada e, vendo a estranheza que o seu riso causa,
justifica-se: pouco antes de eu vir para cá, chegou a Lisboa a notícia da
construção da fortaleza. Foi o piloto Diogo Botelho Pereira que a levou,
navegando desde Cochim numa pequena fusta, que foi cousa espantosa de se ver. Esse
Diogo Botelho fez a volta da Índia, de Cochim para o reino, numa fusta?,
pergunta o mercador aveirense, com assombro. Não o posso crer!
Uma proeza bem singular, de
verdade, confirma Fernão. Durante muito tempo não se falou de outra cousa no
reino. A fusta era o que mais fazia pasmar as gentes que acorriam de todos os
lugares para a ver, pois parecia impossível que alguém pudesse fazer nela tão
espantosa viagem. Diogo Botelho partiu de cá sem licença do governador, que
quase ensandeceu de raiva! É a vez de Castanho rir com gosto: era mais um que
lhe passava a perna e fazia perraria! Nuno Cunha temia que Martim Afonso Sousa
se lhe adiantasse a mandar a notícia a el-rei João para receber as alvíssaras,
por isso se dava muita pressa a consertar uma boa nau para enviar a nova ao
reino por Simão Ferreira, o seu secretário de confiança. Não desconfiou do
piloto e mestre esférico (geógrafo) que tirava as medidas à fortaleza e lhe
fazia os debuxos dela, os quais o atrevido também levou a el-rei João, junto
com o traslado das capitulações do tratado de paz entre Bahadur, rei de
Cambaia, e o governador Nuno Cunha.
Não foi esse Diogo Botelho
Pereira que el-rei degredou para cá, como castigo da sua prosápia em lhe pedir,
sendo quase menino, a capitania de Chaul em troca dos seus serviços como
fazedor das cartas de marear, em que era mestre apesar de tão moço? Esse mesmo,
sem tirar nem pôr, retorque o soldado da Índia ao mestre que aproveita o tempo
morto da navegação para se juntar aos passageiros. Ele já aí está de novo, pois
veio do reino, no ano de trinta e quatro, com o capitão-mor Martim Afonso Sousa
que se gaba de o trazer manso como um cordeiro! Diogo é filho natural de
António Real, antigo alcaide de Cochim, e foi o primeiro português a nascer na
Índia. É levado do diabo! Inda antes de vir ao mundo já a sua história dava que
falar.. Nasceu cá? Então é pardo? Não, é branco. Iria Pereira, a sua
mãe, foi também a primeira portuguesa a vir para a Índia, logo no ano de mil
quinhentos e cinco, dando muito que falar por ter embarcado às escondidas,
vestida de homem, na nau do vizo-rei Francisco Almeida.
Foi uma viagem dos diabos!, lembra
o capitão. Ninguém desmascarou a moça na nau?, espanta-se Luzia Aveiro, a
esposa do mercador, também ela portuguesa. Se foi descoberta, ninguém a
denunciou. Que lhe aconteceu?, insiste a matrona. Havei-la conhecido bem? Sim,
eu passei esses difíceis anos de Cochim perto deles. Viveram felizes nos
primeiros tempos, depois desentenderam-se por causa de umas moças cativas que
Afonso Albuquerque lhes requereu e António Real não lhe quis entregar. O
governador cobiçou-lhe as moças?, pasma a mulher. Não, queria apenas dar-lhes
alforria e dotes, como fazia a muitas outras gentias, livres ou cativas, a quem
mandava criar como cristãs, cuidadas por donas honestas, para as casar com
portugueses, gente limpa que ficasse a morar na Índia, nas terras que para isso
ele lhes dava». In Deana Barroqueiro, O Corsário dos Sete Mares, Casa das Letras,
Oficina do Livro, 2012, ISBN 978-972-462-117-3.
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