segunda-feira, 23 de outubro de 2017

O Corsário dos Sete Mares. Deana Barroqueiro. «Sim, eu passei esses difíceis anos de Cochim perto deles. Viveram felizes nos primeiros tempos, depois desentenderam-se por causa de umas moças cativas»

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Cochim
«(…) Pelos ossos de meu pai!, exclama Fernão, incrédulo, recordando-se das dimensões e imponência da construção, muito embora tivesse chegado a Diu aturdido da extenuante viagem da carreira da Índia e, ocupado em buscar um rumo para a sua nova vida nos escassos dias que ali passara, pouco ficara a conhecer da sua história. Fizestes aquela fortaleza em apenas meio ano? Juro-vos pelos Evangelhos que é verdade, pois laborei nela duramente! A fortaleza, pelo lugar onde se achava, era cousa de tanta sustância para o serviço d’el-rei João III, que deu causa à inimizade entre Nuno Cunha e o Martim Afonso Sousa. O governador queria ter a honra de fazer aquela fortaleza, porém o capitão adiantou-se-lhe e tratou do negócio com Bahadur. Fernão solta uma gargalhada e, vendo a estranheza que o seu riso causa, justifica-se: pouco antes de eu vir para cá, chegou a Lisboa a notícia da construção da fortaleza. Foi o piloto Diogo Botelho Pereira que a levou, navegando desde Cochim numa pequena fusta, que foi cousa espantosa de se ver. Esse Diogo Botelho fez a volta da Índia, de Cochim para o reino, numa fusta?, pergunta o mercador aveirense, com assombro. Não o posso crer!
Uma proeza bem singular, de verdade, confirma Fernão. Durante muito tempo não se falou de outra cousa no reino. A fusta era o que mais fazia pasmar as gentes que acorriam de todos os lugares para a ver, pois parecia impossível que alguém pudesse fazer nela tão espantosa viagem. Diogo Botelho partiu de cá sem licença do governador, que quase ensandeceu de raiva! É a vez de Castanho rir com gosto: era mais um que lhe passava a perna e fazia perraria! Nuno Cunha temia que Martim Afonso Sousa se lhe adiantasse a mandar a notícia a el-rei João para receber as alvíssaras, por isso se dava muita pressa a consertar uma boa nau para enviar a nova ao reino por Simão Ferreira, o seu secretário de confiança. Não desconfiou do piloto e mestre esférico (geógrafo) que tirava as medidas à fortaleza e lhe fazia os debuxos dela, os quais o atrevido também levou a el-rei João, junto com o traslado das capitulações do tratado de paz entre Bahadur, rei de Cambaia, e o governador Nuno Cunha.
Não foi esse Diogo Botelho Pereira que el-rei degredou para cá, como castigo da sua prosápia em lhe pedir, sendo quase menino, a capitania de Chaul em troca dos seus serviços como fazedor das cartas de marear, em que era mestre apesar de tão moço? Esse mesmo, sem tirar nem pôr, retorque o soldado da Índia ao mestre que aproveita o tempo morto da navegação para se juntar aos passageiros. Ele já aí está de novo, pois veio do reino, no ano de trinta e quatro, com o capitão-mor Martim Afonso Sousa que se gaba de o trazer manso como um cordeiro! Diogo é filho natural de António Real, antigo alcaide de Cochim, e foi o primeiro português a nascer na Índia. É levado do diabo! Inda antes de vir ao mundo já a sua história dava que falar.. Nasceu cá? Então é pardo? Não, é branco. Iria Pereira, a sua mãe, foi também a primeira portuguesa a vir para a Índia, logo no ano de mil quinhentos e cinco, dando muito que falar por ter embarcado às escondidas, vestida de homem, na nau do vizo-rei Francisco Almeida.
Foi uma viagem dos diabos!, lembra o capitão. Ninguém desmascarou a moça na nau?, espanta-se Luzia Aveiro, a esposa do mercador, também ela portuguesa. Se foi descoberta, ninguém a denunciou. Que lhe aconteceu?, insiste a matrona. Havei-la conhecido bem? Sim, eu passei esses difíceis anos de Cochim perto deles. Viveram felizes nos primeiros tempos, depois desentenderam-se por causa de umas moças cativas que Afonso Albuquerque lhes requereu e António Real não lhe quis entregar. O governador cobiçou-lhe as moças?, pasma a mulher. Não, queria apenas dar-lhes alforria e dotes, como fazia a muitas outras gentias, livres ou cativas, a quem mandava criar como cristãs, cuidadas por donas honestas, para as casar com portugueses, gente limpa que ficasse a morar na Índia, nas terras que para isso ele lhes dava». In Deana Barroqueiro, O Corsário dos Sete Mares, Casa das Letras, Oficina do Livro, 2012, ISBN 978-972-462-117-3.

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