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Todas as noites da minha vida agradeci a Deus o dom
desse sentimento que nunca mudou. À minha volta, muitos casamentos desabaram,
outros apodreceram depressa, embalados na música veloz de um tempo cada vez
mais aflito. O nosso manteve-se branco e suspenso sobre as convulsões do mundo.
No fim da festa, subimos as escadas os três, de mãos dadas, às gargalhadas. Não
vai levar a noiva ao colo?, perguntou alguém, e tu respondeste: não. A noiva é que
nos leva aos dois pela mão. As raparigas soltaram gritinhos excitados,
chamaram-me abafadora e atiraram-me flores. Senti-me estonteada dentro de uma
chuva de pétalas, o champanhe subindo até ao extremo mais lúcido da cabeça,
abrindo todas as portas que ligam a alma às vísceras. No corredor escuro, a tua
voz soou com uma nitidez de espelho: Jennifer, minha filha, a menina dorme no
quarto do Pedro. Veja se lhe quer mudar alguma coisa para ficar ao seu gosto.
Queremos que se sinta bem cá em casa, minha querida.
Depois fizeste-me uma festa no queixo, o Pedro pousou um beijo na minha testa,
e os dois entraram no nosso quarto, aquele que tinha a larga cama de dossel da
minha avó e os lençóis de linho debruados a frioleiras que ela bordara para
celebrar a minha entrada no universo do amor real.
Não
percebi porque é que nada sucedia de acordo com as normas, mas nessa noite nem
sequer fiquei triste. Estava muito cansada de ter sorrido e dançado o dia
inteiro, cansada de ser bonita e espirituosa num vestido pesado de rainha,
pensei apenas que me querias proteger, como sempre, ou que simplesmente te
agradava prolongar um pouco mais o perverso prazer da espera. Rodei muitas e
muitas vezes a aliança no dedo, enchi de beijos o oiro quente e adormeci, já
sem medo desse momento de entrega final que tanto me perturbava os sonhos. Nunca
contei esta história a ninguém. Não me pareceu que tivesse qualquer interesse,
as pessoas aborrecem as histórias felizes e têm razão, a felicidade convoca o
que em nós há de mais melancólico e solitário. Comecei agora a escrevê-la
sobretudo para Camila, temo que um dia ela descubra a totalidade dos factos e
se zangue connosco. Os factos, minha querida Camila, não existem, são peças de
loto que inventamos e encadeamos para
nos sentirmos vitoriosos ou, pelo menos, seguros. Cada ser tem o seu segredo,
cada amor o seu código intransmissível. Do nosso amor nasceste tu, e devo-te um
esforço de decifração desse código que é a tua herança, a luz que te é dada para
que a transformes na tua particular aparição.
Sobretudo, não procures no amor o caminho que ele não tem.
No fim da Guerra, as pessoas descobriram-se entre ruínas e acreditaram que o
mundo podia salvar-se através da construção. Os mestres de obras enriqueceram,
passaram a chamar-se empreiteiros e tornaram-se exemplos a seguir para tudo. A
utilidade fez-se valor dominante, os filósofos estudaram ciências naturais,
estenderam as inquietações sociais em mesas, como dantes só se fazia à massa
dos bolos, aos animais vivos ou aos cadáveres humanos, e montaram consultórios
para resolver as pessoas. E o amor, que não tem resolução, desapareceu. O tempo
tomou-lhe o lugar, mas o tempo gira ao contrário da luz, do branco para o
negro. Por isso é preciso que gire a uma velocidade cada vez maior, para que a
vida passe sem darmos por ela. O amor, Camila, é o único travão da morte, foi
isto o que tentei dizer quando um relâmpago te roubou o Eduardo. A crueldade do
amor é exactamente essa, imobiliza a vida na
eternidade, mas o relâmpago escusava de ser tão literal. Se não tivesse vindo
nos jornais ninguém acreditaria que um rapaz pudesse desaparecer assim, saindo
do mar, aos vinte anos, rachado por um raio caído do céu.
A
luz tem os seus desígnios e os seus escolhidos, nasceste marcada por ela, sem
essa língua de fogo incendiando o primeiro dos teus corações talvez nunca o
tivesses descoberto. Não penses que estou a dourar o drama da tua existência.
Tento, pelo contrário, descrever tranquilamente a possível verdade destes setenta
e cinco anos que já vivi. Como sabes, nunca tive que procurar emprego ou
desenvolver uma eficiência qualquer. Custa-me tanto ver-te às vezes tão
destruída pelo dinheiro, Camila, tu enfureces-te comigo, dizes que é a
subserviência das pessoas o que assim te destroça, a facilidade com que se
vergam ao poder e abandonam tudo aquilo em que acreditaram juntas, mas é o
dinheiro o que assim verga as pessoas, o dinheiro lustroso que as veste da cor
do Tempo, um longo manto de retalhos de papel que se confunde com a glória e a
felicidade eterna. Respondes rapidamente que sempre assim foi, e é
provavelmente verdade, mas eu pertenço à última geração de raparigas poupadas
ao flagelo de ganhar a vida. Vi a marquesa de
Faya despejando os últimos anéis sobre o pano verde do jogo, vi-a morrer
aos pés dos croupiers e ser empurrada para longe da mesa pelos pés ávidos de
outros perdedores, mas nunca vi duas amigas degladiando-se pelo favor de um
chefe.
Agora
que as guerras acabaram, a primeira coisa a que as pessoas parecem capazes de
sobreviver é a si mesmas, e é isso o que mais assusta. Se ao menos o teu
trabalho não se parecesse tanto com o amor, Camila, mas essa promiscuidade
infiltra-se em ti como uma doença. Quiseste viver do teu talento e agora ele
tritura-te como uma máquina registadora. Fotografas uma Terra sem Céu; por mais
que me fales de necessidade de distanciamento e de registo irónico eu não
consigo deixar de ver uma imensa névoa de gelo retraindo os contornos das tuas
imagens irrepreensíveis. Pões nas fotografias o rigor que não encontras na
vida, sempre que as pessoas te magoam por omissão fechas-te na câmara escura a
sublinhar contrastes. Atravessei épocas materialmente complicadas, mas a
imobilidade do amor manteve-se inalterada no centro da minha vida». In
Inês Pedrosa, Nas Tuas Mãos, Publicações dom Quixote, colecção BIS, 2009, ISBN
978-989-660-000-6.
Cortesia de
PdomQuixote/JDACT