«(…)
As suas mãos estão a tremer,
doutor. Passa-se alguma coisa? Passa-me o bisturi e cala-te. Passa-se que em
vez de uma enfermeira experiente, serena, calada, que me ajude, tenho de dar
aulas práticas a estagiários como tu, pesporrentes e palradores, ao mesmo tempo
que tento livrar do mal a mama de uma mulher. Com cuidado. Com as mamas é
preciso um cuidado particular. Não é só uma mama, lembra-te disso, por favor,
Afonso. É a minha auto-estima. Por favor, Afonso. Uma das vantagens de se
nascer homem é não centrar a auto-estima nas mamas, à mercê de qualquer azar do
destino. Um homem não tem de pedir que, por favor, lhe poupem a auto-estima. Um
homem ri-se da palavra auto-estima. Auto-estima nem sequer é uma palavra: é um
adereço, um postiço de salvação. Um airbag.
Em forma de mama. A cabra. A sonsa. A traidora. Agora em versão chorosa. Por
favor, Afonso. Em nome do que vivemos. O que vivemos não é para aqui chamado. Se
eu quisesse lembrar-me do que vivemos, teria de me lembrar do dia em que tu me
disseste que precisavas de um tempo de pousio. E então lembrar-me-ia de que uma
semana
depois te encontrei
pousada no colo de outro. Éramos garotos, Afonso. Foste o meu primeiro amor. Tanto
desces por causa de uma mama, Elisa? Tentarei salvar-te a pele. Evitarei as
cicatrizes. Sei que é injusto que as mulheres sejam discriminadas pelas
cicatrizes. Sei também que é injusto que aos homens se exijam cicatrizes. Para
mim, agora, és só uma doente. Mais uma. E isso é bom para ti, bom para a tua
auto-estima mamária. Porque eu sou um profissional. Um bom profissional, como
tu hoje sabes.
Só aos carniceiros não tremem as mãos,
abécula. Olha para o que faço. Aprende alguma coisa. A destreza das mãos começa
no cérebro. Que também treme. Pelo menos se estiver vivo. O primeiro amor, o
tanas. Irrita-me esse arquivo organizado a que as mulheres chamam romantismo. Como
se houvesse segundo, terceiro, quarto, quinto amor. Como se o amor fosse a
escada de um prédio de apartamentos. O amor é uma coisa que começa velha, uma
forma de demência que nos leva a concentrar os corpos e rostos que desejámos
num só. O amor. Esta massa esponjosa, doente, que tanto me excitava. Curei-me
por causa do que sofri por esta mulher. Horas infindáveis de solidão com as
agulhas do ciúme moendo-me
pele e vísceras e crânio e coração. Dias e noites triturando tudo o que eu era,
com um rigor de tanque de guerra. Eu era tão pouco. Um garoto deslumbrado com a
descoberta do corpo de uma mulher. Acreditava que aquela mulher era única, e
que seria minha para sempre. Desculpa, tenho de cortar mais do que pensava,
Elisa.
Desconfia dos médicos cujas mãos não
tremam. São os que não sentem medo que matam. Tenho medo de deixar de ter medo.
De deixar de me importar. De começar a pensar que o que eu faço não é
importante, porque todos temos de morrer, um dia ou outro. Substituímos o tempo
pelo espaço para não pensarmos na morte. Decretámos o fim da História para
podermos trocar o rosto trágico que nos distingue por um rosto belo, sem marcas
nem território. O rosto da minha filha, como seria hoje? Desenho-o incontáveis
vezes. Acabo sempre por o apagar, porque não o reconheço. Não existe. Hoje é
dia de jogo. Dia de jantar com os rapazes. Depois de salvar a mama de Elisa, a
rapariga que me iniciou nos prazeres do sexo e na arte da traição. Gostava de
não lhe deixar marcas. Um cavalheiro nunca deixa marcas. Mas eu não sou um
cavalheiro. Fiz o melhor que podia,
Elisa. Depois arranjo-te um excelente cirurgião plástico. Arranjo-te uma mama
de silicone, perfeita como sempre gostaste de ser. Chamem-me vaidoso, se isso
vos der prazer. O prazer de descobrir gente mais imprestável do que nós, isso
que alimenta a literatura. Sou feito de papel e tinta, pelo menos neste momento
em que os vossos olhos deslizam sobre esta página. Nem sequer ainda me vislumbraram
os contornos, e já sabem que me dedico a aventuras sexuais pouco ortodoxas e
que sou vaidoso. O conteúdo antes da forma. A moral de perna ao léu, correndo
do fim da história para o seu início, poupando-vos a mariquice das entrelinhas.
O caos em vez do corrimão do aforismo. Convém-vos? É-me indiferente o que vos
convém, o modo como vos ensinaram a ler. Introdução, desenvolvimento,
conclusão. Um enredo amorosamente bordado, capítulo a capítulo, com personagens
espreguiçando-se nos lençóis da prosa, despindo-se da banalidade inaugural para
nos desvendarem as suas almas repletas de cambiantes até ao clímax, de
preferência trágico. A tragédia cai sempre bem, confere-nos umas sombras de
sagacidade. Muita palha para criar ambiente, um celeiro cheio de crepúsculos
dolentes e episódios marginais. Tralha, comboios de móveis e acessórios.
Sou homem, não gosto de ler romances. Fiz de conta que gostava, durante uns
anos, para caçar miúdas.
Pensava que aprenderia a caçá-las melhor
se lesse o mesmo que elas, como se pudesse penetrar-lhes nos sonhos. Mas os
sonhos das mulheres são em geral diferentes dos desejos que rugem dentro delas.
Uma espécie de biombo contra a brutalidade que querem, porque ainda são
animais. Como nós. Os romances têm princípio, meio e fim, regulação de tempos e
temperatura. Fazem dos sentimentos pautas instrumentais convergindo para um
concerto de orquestra. Eu não tenho sentimentos desses, que se possam dedilhar,
analisar, apreciar e aplaudir. Tenho uma massa suja de nervos e sangue que me
serve muito bem. Às vezes dói, às vezes dança. Uma caixa negra que será
enterrada comigo, sem chatear ninguém. Não me importa o que pensem ou digam de
mim. Estou habituado. Os homens chamam-me vaidoso, as mulheres, egoísta. Não há
homem que não pareça egoísta diante do manancial de amor de uma mulher.
Multiplicação milagrosa: quanto menos se lhes dá mais elas têm para dar. Gostam
de se sentir superiores. Pelo menos as mulheres não têm preconceitos contra a
vaidade. Poucas coisas
dão tanto prazer à espécie humana como apontar os defeitos dos seus iguais.
Para os maus hábitos de qualquer outra espécie arranja-se sempre desculpa. A
Humanidade é a única culpada dos males do mundo: eis a grande descoberta da
recta final do século XX. Porquê?» In Inês Pedrosa, Os Íntimos,
Publicações dom Quixote, 2010, ISBN 978-972-204-047-1.
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