«(…) Porque detém o privilégio
da razão, e não o usa como deve, é o que dizem. Racionalidade é o que demonstra
um leão quando mata um veado para se alimentar, a si e à sua família. Trata dos
seus interesses e da sua preservação. Um homem que se lança para dentro de um
prédio em chamas para salvar desconhecidos, incluindo animais, se os houver,
não age racionalmente. Observo mais razão do que sentimentos na acção de um
gato. O social é incompatível com o racional, e a sociabilidade dos homens tem
aumentado pelo menos tanto quanto o buraco do ozono. Os seres humanos são
dependentes uns dos outros. Cada vez mais dependentes. Incluindo os
melancólicos ensimesmados, como o meu amigo Pedro, que exibe uma armadura de
desdém por qualquer multidão constituída por duas pessoas. Estende a idade
pueril sobre as escarpas da sua biografia e pedala na sua bicicleta de
rodinhas, imune às desventuras que cobrem as bermas do seu percurso absorto.
Desde que se oficializou como fenómeno psicológico, a infância tornou-se duradoura.
Substitui-se aos casamentos, que vêm com um arsenal de regras que já ninguém
tem paciência para cumprir. É muito mais fácil sermos responsáveis pela
qualidade da água e do ar e do solo e não sei mais o quê do que por um
juramento de fidelidade. Criámos a era das responsabilidades impossíveis. Da
bondade abstracta. As abstracções provocam-me um tédio avassalador.
Gosto de simplificar. Os tumores têm
essa característica: são simples. Benignos ou malignos. Matamo-los ou
matam-nos. Quanto mais jovem é a vítima, mais veloz é a propagação das células
cancerosas. Os tumores mostram-nos as vantagens do envelhecimento. São
praticamente a única coisa viva que respeita a idade e desacelera por causa
dela. Nos organismos velhos, as células malignas são mais lentas. Essa é uma
das belezas da oncologia. A outra é a simplicidade. A heurística médica
manda-nos seguir a lei da navalha de William of Occam: quando várias soluções
são possíveis, devemos escolher a mais simples. Palavras, conceitos e
suposições não devem ser usados mais do que o estritamente necessário. Só um
cérebro disciplinado na clareza pode chegar ao diagnóstico exacto. Os erros
existirão sempre. São compensados pela gratidão dos doentes que sobrevivem. A forma como se
entregam nas nossas mãos. Já só os doentes se sabem entregar, pôr toda a sua
esperança e desespero à mercê de alguém.
Por isso pouco me importa que me chamem
vaidoso. A vaidade que me atribuem é uma espécie de antecâmara da admiração que
os meus pares me dedicam. Custa-lhes admitir que sou de uma competência extrema
quando se trata de anunciar a morte aos meus pacientes. Dou prelecções sobre o
assunto. Pagam-me para ensinar o melhor método de dizer a uma pessoa que o seu
futuro acabou. Tenho aquilo a que a Leonor, ao princípio, chamava o dom da
consolação. Ou a habilidade de apontar caminho para a aceitação, que é mais ou
menos a mesma coisa. Os calhamaços de medicina não servem para isto. Não é uma
questão de palavras. As palavras são sempre pedras, pedaços de fronteiras.
Servem para separar, para rasgar. Podem ser plagiadas, decalcadas como
passaportes falsos. Nunca enganam por completo. Nunca revelam a verdade toda.
Mudam com o sotaque, a voz, a ordem na frase, o esforço. Gosto de ler em voz
alta. Leio todos os dias à minha filha um capítulo de um livro. Sei que ela não
me ouve. Ouço-me eu, a ler para ela. Comecei a ler-lhe desde que nasceu». In Inês Pedrosa, Os Íntimos, Publicações dom Quixote,
2010, ISBN 978-972-204-047-1.
Cortesia de PdomQuixote/JDACT