O
contrato da carne
«(…)
Valentim Pedroso de Barros acabara de chegar de uma longa viagem através das
montanhas que separavam o Rio de Janeiro do Sertão das Minas do Ouro. Sentia-se
cansado e apreensivo pela missão da qual fora incumbido: levar uma dama até às
Minas. Como seria a tal fidalga? Gorda e mole, como todas as mulheres ricas das
cidades. E se morresse durante a viagem? Não que a vida dela tivesse grande
importância para ele. Havia um ano Valentim morava num lugar onde reinavam a
morte e a destruição. Estava nas Minas desde 1706. Mas uma dama de fraca e
mulheril natureza, vagarosos pés, nas estradas mineiras seria um estorvo.
Preferiria estar indo de encontro a um exército inimigo num campo de batalha.
Ao menos saberia que armas usar.
Quando cruzava a rua Direita, Valentim
ouviu o estrondo de um canhão. Na baía do Rio de Janeiro, os navios da frota
chegavam de Portugal, com velas soltas e bandeiras maltrapilhas. As embarcações
davam salvas de artilharia, o forte respondia com outros tiros. No porto,
grupos de homens e mulheres desembarcavam de pequenos bergantins; eram gente
que ia para as Minas. Embora cansados e famintos, muitos deles lançavam-se em
terra aos gritos de felicidade, com as mãos para o alto, ou se ajoelhavam para
beijar o chão. Senhores, criados, lavradores, capelães, meretrizes iam-se
passando às ruas e desapareciam entre as casas. Jovens minhotos, sem bagagem, indecisos,
caminhavam entre mulas que vagueavam, observados por escravos negros sentados à
sombra, esperando a descida do sol. Recém-chegados adejavam em torno dos montes
de bagagem, gesticulando. Carregadores e aguadeiros, com as cabeças enfeitadas de
plumas, dormiam à porta do trapiche (armazém onde se guardam as mercadorias
para embarque, junto ao cais).
Na fortaleza de São Sebastião não
havia nenhum soldado à vista. De um lugar qualquer vinha o som arrastado de um canto
gregoriano. Valentim desmontou do seu cavalo e enveredou pela ladeira da Misericórdia.
Pela janela de sua casa, Mariana Lancastre podia ver os navios fundeados nas águas
azuis do Atlântico sob a luz do sol, o forte Villegaignon envolto na neblina
transparente das emanações de um calor estival, incomum no mês de Julho. As
folhas das árvores estavam paradas, só as abelhas mandacaias insistiam em se
mexer. O bergantim do governo, maior que os outros, encostou no porto. Dragões,
em gala, receberam os oficiais da frota que traziam uma caixa marcada com
inscrições douradas. Depois das saudações, os soldados escoltaram os oficiais
pela rua Direita; entraram na casa do governador, levando a caixa sobre uma
imensa almofada de veludo.
O
amanuense Tenório entrou na sala. Muito alto e magro, usava uma, roupa preta
que o tornava ainda mais pálido do que realmente era. Afinal chegastes, disse Mariana.
Podeis ler uma carta para mim? Acabou de chegar na frota. Tenório pegou o papel
sobre a mesa. É de vossa irmã Maria Clara. A carta relatava a festa de coroação
de João V: as ruas de Lisboa, repletas de gente, enfeitadas com arcos de
folhagens e flores; o céu iluminado de fogos; os nobres em carruagens douradas;
música nas ruas e no paço. Maria Clara descrevia o jovem rei de dezoito anos
para a irmã. Apesar de tê-lo visto à distância, pudera notar o seu rosto fino
de pele muito clara, as sobrancelhas arqueadas, o nariz longo e os lábios
vermelhos. Vestia-se em ouro e pedrarias. Maria Clara dizia que o rei estava em
busca de uma esposa. Ansiara que ele a visse, entre as damas da Corte. Tivera a
impressão, por um instante, que o soberano a olhara. Como Maria Clara é tola, disse
Mariana». In Ana Miranda, O Retrato do Rei, Editora Schwarcs, Companhia das
Letras, 1991, ISBN 978-857-164-190-7.
Cortesia de
ESchwarcs/CdasLetras/JDACT