O
contrato da carne
«Deus
criou a luz, disse frei Francisco Meneses, acendendo uma vela. As águas, o
firmamento; a terra e a relva. A sua voz ecoava na igreja vazia. Criou o sol, a
lua, as estrelas. Uma mariposa acercou-se da chama e ficou rodeando-a, numa
atracção fulminante. Criou os animais estúpidos, olhou o homem a seu lado, e o
homem. Sorriu. Que não deixa de ser um animal estúpido. Flexionou os joelhos,
reverente; fez o sinal-da-cruz. Virou-se para o seu interlocutor, sem dar as
costas para o altar. Fernando Lancastre, o governador da capitania do Rio de
Janeiro, São Paulo e Minas do Ouro ouvia-o, silencioso. Criou um jardim
paradisíaco para que os seres ali habitassem e plantou a árvore proibida,
continuou o trinitário. E disse ao homem: do fruto do conhecimento não comerás.
Se comeres, morrerás. O padre e o governador caminharam pelo corredor da
igreja. A espada de Fernando às vezes arranhava o chão, emitindo ruídos
estridentes. Esta é a mais idiota de todas as histórias, disse frei Francisco. A
mais mentirosa. O conhecimento não traz a morte. Todos os seres morrem, sejam
árvores, papagaios, macacos, zebras. Ainda sereis queimado por vossas
estultícias, disse o governador. O conhecimento traz apenas a infelicidade,
apenas isso. Mas prefiro ser um desgraçado entendedor que uma mula aventurosa.
Como eu ia dizendo, Deus fizera um rio que saía do Éden para regar o jardim do
Paraíso. Num braço desse rio, chamado Pisom, o que rodeava a terra de Havilá,
havia ouro. O ouro refulgente. Na sua infinita malícia, Ele nada avisou ao
homem. Hic jacet lepus.
Poderia aquele reino ignorante entender latim? Ali se escondia a lebre,
completou.
Tolices.
O ouro traz benefícios, disse Fernando, ao entrarem na sacristia. Numa banca
brilhava um crucifixo. O padre sentou-se no faldistório, sobre o estofo rasgado.
Benefícios? A poderosa força maléfica do ouro cria mais ruínas que fortunas;
todos se tornam credores e devedores; a ambição supra os demais sentimentos. A
ilusão da opulência e do poder destrói a ética. Pelo ouro, os justos cometem
injustiças, os sagazes tornam-se parvos e os idiotas brilham na retórica. Pegou
um cálice dourado. Olhou o reflexo de seu rosto, distorcido, no metal. E para
que os homens sonham com o ouro?, continuou o padre. A realização dos seus
sonhos está perto, entre pedras de cascalho, ali, entre rochas e penedos, a um
passo, basta estender a mão para atingir o zénite. O zénite do quê? A visão dos
seus sonhos evapora-se como um resto de chuva em dia de sol. E se no meio de
uma imensa devastação alguém se decide a perguntar: porque, mesmo, queremos o
ouro? Por que sonhávamos? Ninguém saberá responder. Mas eu vos digo: para
reinar, para comer e para fornicar. É isso que os homens desejam, e nada mais.
Reinar, comer, fornicar.
Fernando
mantinha-se silencioso. Considerava aquele padre um desleal prevaricador,
soturno, crápula, e tinha problemas demais para perder tempo com filosofias
esdrúxulas e blasfemas. Além disso, percebia aonde frei Francisco queria
chegar, com aquelas ruminações inconvenientes. Ia pedir-lhe a prorrogação do
monopólio da venda de carne nas Minas do Sertão. Poucos, disse o padre,
elevando o indicador, são os que contam o trágico fim de Jasão. Ele perdeu tudo
o que tinha. O mesmo navio que o levara de encontro ao velocino de ouro o
esmagou. Este é o destino de todos os heróis. Frei Francisco suspirou. Tinha
nariz longo quebrado na metade, sobrancelhas juntas. Estas rugas, disse o frei,
oferecendo uma visão completa do seu rosto, são as únicas condecorações que
recebi pelos meus esforços. O próprio Midas esteve a ponto de morrer de fome, e
nasceram-lhe duas orelhas de burro». In Ana Miranda, O Retrato do Rei, Editora
Schwarcs, Companhia das Letras, 1991, ISBN 978-857-164-190-7.
Cortesia
de ESchwarcs/CdasLetras/JDACT