1880
«(…) Um
dia qualquer, era o seu eufemismo para o tempo em que sua mulher fosse morta, diria
adeus a Londres e passaria a viver no campo. É verdade que havia a casa; e
havia as crianças; e havia também... A sua expressão mudou. Ficou menos
infeliz, mas também um pouco furtivo e nada à vontade. Tinha para onde ir,
afinal. Enquanto conversavam, guardara esse pensamento no fundo da cabeça.
Quando se voltou e viu que os outros tinham ido embora, este foi o bálsamo que
botou na ferida: iria ver Mira. Mira, pelo menos, ficaria contente de vê-lo.
Assim, ao deixar o clube, não foi para o East, para onde se dirigiam os homens
atarefados; nem para o West, onde a sua própria casa ficava em Abercorn
Terrace. Mas seguiu na direcção de Westminster pelos caminhos calçados que atravessavam
o Green Park. A relva estava muito verde. As folhas começavam a apontar. Eram como
pequenas ganas, pés de passarinhos brotando dos galhos. Havia como que uma
centelha, uma animação por toda parte. O ar era estimulante e recendia a
limpeza. O coronel Pargiter, porém, não via nem a relva nem as árvores.
Atravessou o parque, no seu sobretudo abotoado, olhando sempre para a frente.
Mas, quando atingiu
Westminster, parou. De modo algum gostava dessa parte da história. Cada vez que
se acercava da ruazinha escondida pela massa gigantesca da Abadia, a rua de pequenas
casas humildes, de cortinas amarelas e cartazes nas janelas, a rua em que o
homem dos pãezinhos parecia tocar incessantemente a sua sineta, em que as
crianças berravam e pulavam para dentro e para fora das riscas de giz na
calçada, ele estacava. Olhava para a direita, para a esquerda. E então
caminhava direito até à porta e esperava de cabeça baixa. Não gostaria de ser visto
à espera naquele limiar de porta. Não gostava de esperar até ser admitido. Não gostava
quando a sra. Sims o deixava entrar. Havia sempre um cheiro na casa. Havia
sempre roupa suja pendurada no varal no jardim dos fundos. Subiu a escada,
pesado, macambúzio, e entrou na sala. Não havia ninguém, chegara muito cedo.
Olhou em volta do aposento com repugnância. Havia excesso de objectos.
Sentia-se deslocado, como se ocupasse lugar excessivo, de pé, diante da lareira
fechada por uma grade em que se via pintado um martim-pescador no acto de
pousar sobre um feixe de juncos. No soalho de cima alguém dava carreirinhas
para um lado e para o outro. Estaria alguém com ela?, perguntou-se, apurando o
ouvido. Crianças gritavam na rua. Era sórdido, vulgar, furtivo. Um desses
dias..., disse consigo mesmo. Mas a porta abriu-se e Mira, sua amante, entrou.
Oh, Bogy, querido!,
exclamou. Tinha o cabelo em grande desalinho. E um ar um tanto balofo. Mas era
muito mais moça do que ele e parecia sinceramente contente de vê-lo, pensou. O
cachorrinho saltou para ela. Lulu! Lulu!, gritou, apanhando o animal numa das
mãos e levando a outra ao cabelo. Vem e deixa que o tio Bogy te veja. O coronel
instalou-se na cadeira de vime, cheia de estalos. Ela depôs o cão nos joelhos
dele. Havia um sinal vermelho atrás de uma das orelhas do bicho. Talvez um
eczema. O coronel pôs os óculos para examinar aquilo de perto. Mira beijou-o no
ponto onde o colarinho encontrava o pescoço. Os óculos dele caíram. Ela apanhou-os
e pôs no cachorro. O velho estava deprimido, sentiu. Naquele misterioso mundo
de clubes e vida de família, do qual ele não lhe falava nunca, alguma coisa
estava errada. Ele chegara antes que ela tivesse tido tempo de arranjar o
cabelo, o que era um aborrecimento. Mas o seu dever era diverti-lo.
E pôs-se a divagar
pela sala, o seu corpo, embora avolumado como agora, ainda lhe permitia esgueirar-se
entre mesa e cadeira, para cá, para lá. Removeu a grade da lareira e fez um fogo
antes que ele pudesse impedi-la. Depois, sentou-se no braço da cadeira do coronel.
Oh, Mira!, disse ela mesma, vendo-se ao espelho e mexendo com os grampos do
cabelo. Que menina desleixada és! Soltou uma longa trança e deixou-a cair sobre
os ombros. Era um cabelo ainda lustroso, belo e cor de ouro, embora ela já
beirasse os quarenta e tivesse, para dizer a verdade, uma filha de oito, que
amigos criavam em Bedford. O cabelo agora se desmanchava por conta própria, e
Bogy, vendo-o cair macio, curvou-se e beijou uma das madeixas. Um realejo
pusera-se a tocar lá fora e todas as crianças correram na direcção do som,
deixando atrás um súbito silêncio. O coronel começou a afagar o pescoço dela. E
a remexer com a mão, que perdera dois dedos, bem mais em baixo, onde o pescoço
encontra a espádua. Mira escorregou para o chão e apoiou as costas nos joelhos
de coronel». In Virgínia Woolf, Os Anos, 1937, Relógio D'Água, 1992, ISBN-978-972-708-154-7.
Cortesia de
Relógiod’Água/JDACT