1880
«(…) Então
houve um estalido na escada. Alguém bateu de leve, como que para avisá-los da
sua presença. Mira imediatamente prendeu o cabelo outra vez, levantou-se, saiu
e fechou a porta. O coronel recomeçou, na sua maneira metódica, a examinar a
orelha do cão. Seria um eczema? Ou não? Olhou a marca vermelha, depositou o
cachorrinho de pé na sua cesta e esperou. Não gostava nada daquele prolongado
cochicho no patamar da escada. Por fim Mira voltou. Tinha um ar preocupado. E
quando ficava preocupada, parecia mais velha. Começou a dar uma busca debaixo das
almofadas e cobertas. Precisava da bolsa, disse. Onde teria ido parar? Naquela
confusão de objectos, pensou o coronel, poderia estar em qualquer lugar. Era
uma pobre bolsa murcha quando, afinal, ela a descobriu sob umas almofadas no
canto do sofá. Virou-a de cabeça para baixo, sacudiu. Lencinhos, pedaços de
papel, moedinhas de prata e de cobre caíram em profusão. Deveria haver uma
libra, disse.
Estou certa de que a
tinha uma ainda ontem, murmurou. Quanto?, perguntou o coronel. Era coisa de uma
libra, não, de uma libra, oito xelins e seis pence, disse ela, resmungando
alguma coisa sobre a lavandaria. O coronel tirou duas libras da sua bolsinha de
ouro e deu-as a ela. Mira as levou e houve novos cochichos do lado de fora da
porta. Lavandaria?, pensou o coronel, correndo os olhos pelo aposento. Uma
pocilga. Mas sendo tão mais velho do que a mulher, não era o caso de lhe fazer
perguntas sobre roupa suja. Ali estava ela outra vez. Veio ligeira pela sala, sentou-se
no chão e descansou a cabeça contra os joelhos dele. O fogo recalcitrante, que de
havia muito bruxuleava, extinguira-se àquela altura. Deixe estar, disse ele com
impaciência, quando viu que ela pegara o atiçador. Deixe ficar assim, apagado. Mira
largou o ferro. O cão ressonava. O realejo tocava na rua. A mão dele começou a sua
viagem, para cima, para baixo, do pescoço dela para dentro, para fora da
cabeleira farta. Naquela casa pequena, tão próxima das outras casas, anoitecia
depressa. E as cortinas estavam cerradas a meio. Ele a puxou para perto,
beijou-a na nuca. E a mão, a que perdera dois dedos, pôs-se de novo a remexer
desajeitadamente onde o pescoço encontrava a espádua.
Uma rajada de chuva
bateu na calçada, e as crianças, que tinham ficado a saltar num pé só para dentro
e para fora dos seus cercados de giz, correram para casa. O velho menestrel de
rua, que cambaleava ao longo do meio-fio com um boné de pescador airosamente
posto bem para trás da cabeça, cantando: count your blessings/ Count your blessings, levantou a gola
do casaco curto e refugiou-se sob o pórtico de um botequim, onde completou a sua
injunção.
Então o sol voltou
a brilhar. E secou o calçamento. Não está fervendo ainda, disse Milly Pargiter,
examinando a chaleira. Estava sentada à mesa, a mesa redonda da sala de estar
da frente, na casa de Abercorn Terrace. Nem de longe!, repetiu. A chaleira era
antiquada, de cobre, com um desenho de rosas já quase apagado. Uma pequenina
chama muito frágil subia e descia debaixo dela. A irmã de Milly Pargiter, delia,
reclinada numa cadeira ao lado dela, também olhou o fogareiro e perguntou por
perguntar, sem nenhum siso. Chaleira tem de ferver? Não que esperasse resposta,
e Milly não lhe deu nenhuma. Ficaram a observar silenciosamente a pequena chama
no seu pavio amarelo. Havia muitas xícaras e pires na mesa, como se outras pessoas
fossem esperadas. Mas naquele momento estavam as duas sozinhas. A sala tinha
excesso de mobília. Em frente delas havia um armário holandês de coleccionador,
com porcelana azul nas prateleiras. O sol da tarde de Abril punha brilhantes
aqui e ali no vidro. Sobre a lareira, o retrato de uma moça ruiva vestida de
musselina branca, com uma cesta de flores no regaço, sorria para elas. Milly
tirou um grampo do cabelo e começou a separar os fios do pavio grosso para
aumentar a chama». In Virgínia Woolf, Os Anos, 1937, Relógio D'Água, 1992, ISBN-978-972-708-154-7.
Cortesia de
Relógiod’Água/JDACT