sábado, 18 de novembro de 2017

Camões. A Infanta dona Maria. José Maria Rodrigues. «Esta foi a celeste formosura da minha Circe, e o magico veneno, que pôde transformar meu pensamento»

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(…) No soneto Quando cuido, contemporâneo da canção 6.ª insiste o poeta no receio que tem de se esquecer da infanta:

Quando cuido no tempo que contente
Vi as pérolas, neve, rosa e ouro,
Como quem vê por sonhos um tesouro,
Parece tudo tenho aqui presente.

Mas, tanto que se passa este accidente,
E vejo o quão distante de vós mouro,
Temo quanto imagino por agouro
Porque de imaginar também me ausente.

Já foram dias em que por ventura
Vos vi, Senhora, se, assi dizendo, posso
Co coração seguro estar sem medo.
[……. se isto dizer posso
Co coração seguro, sem ter medo]

Agora, em tanto mal, não me assegura
A própria fantasia, e nojo vosso.
Eu não posso entender este segredo!

Qual a causa porque o poeta receava ausentar-se de imaginar na infanta? Seria effectivamente por ver quão distante della morria?
Mas não se lê na elegia 3.ª:

Uma cousa, Senhor, por certa asselle:
Que nunca amor se afina, nem se apura.
Em quanto está presente a causa delle?

Seria porque estava convencido de que a infanta não era estranha ao seu desterro para as Molucas e castigava com tão grave penitencia tão pequeno erro, como era o ter-lhe amor? Mas não diz elle na canção 6.ª :

... Se tão longo c misero desterro
Vos dá contentamento,
Nunca me acabe nelle meu tormento?

Nota: Veja-se também o soneto 68, já citado:
Dai-me uma lei, Senhora, de querer-vos,
Porque a guarde, sob pena de enojar-vos.
Agora a própria phantasia não assegura o poeta de que não venha a aborrecer a infanta. É isso que elle leme.

É que estas causas, que, por si sós, lhe não arrancariam do coração o seu alto pensamento, começaram a avolumar-se, pela acção do magico veneno, que uma Circe, de celeste formosura, lhe ia ministrando. E, sentindo os effeitos desse veneno, Camões assustava-se com a ideia de olvidar a bem-amada. Como era possível que se lhe apagasse da alma aquelle gesto tão soberano, que lhe havia mudado o ser, de humano em divino? Como era possível que abandonasse aquelle seu pensamento, pelo qual teria morrido contente?

Eu não posso entender este segredo!

exclama o angustiado poeta. Mas o veneno foi produzindo os seus effeitos e operou a receada transformação. Eis como o poeta nos apresenta a estranha creatura, que se lhe apoderou do coração e dos sentidos, a ponto de obliterar a imagem da infanta:

Um mover d’olhos, brando e piedoso,
Sem ver de quê; um riso brando e honesto,
Quasi forçado; um doce e humilde gesto,
De qualquer alegria duvidoso;

Um despejo quieto e vergonhoso;
Um repouso gravíssimo e modesto;
Uma pura bondade, manifesto
Indicio da alma, limpo e gracioso;

Um encolhido ousar, uma brandura;
Um medo sem ter culpa, um ar sereno;
Um longo e obediente sofrimento:

Esta foi a celeste formosura
Da minha Circe, e o magico veneno,
Que pôde transformar meu pensamento.
(Soneto 35).

De quem se trata? Naturalmente de alguma estonteadora formosura oriental, que, com a sua apparente impassibilidade, tão profunda revolução produziu na alma do apaixonado adorador da infanta. Do que me não resta duvida é de que o poeta trazia comsigo a seductora Circe, quando naufragou na costa da Cochinchina, e ahi a viu perecer afogada, sem lhe poder valer. E foi então que elle, ao exprimir a sua dor, attingiu o supremo grau na poesia lyrica». In José Maria Rodrigues, Camões e a Infanta Dona Maria, Separata do Instituto, Imprensa da Universidade de Coimbra, Coimbra, 1910, há memória do Mal-Aventurado Principe Real Luis Philippe (3 1761 06184643.2, PQ 9214.R64 1910.C1.Robarts/.

Cortesia doAHistórico/UCoimbra/JDACT