(…)
No soneto Quando cuido, contemporâneo da canção 6.ª insiste o poeta no receio
que tem de se esquecer da infanta:
Quando cuido no tempo que contente
Vi as pérolas, neve, rosa e ouro,
Como quem vê por sonhos um tesouro,
Parece tudo tenho aqui presente.
Mas, tanto que se passa este accidente,
E vejo o quão distante de vós mouro,
Temo quanto imagino por agouro
Porque de imaginar também me ausente.
Já foram dias em que por ventura
Vos vi, Senhora, se, assi dizendo,
posso
Co
coração seguro estar sem medo.
[……. se isto dizer posso
Co coração seguro, sem ter medo]
Agora, em tanto mal, não me assegura
A própria fantasia, e nojo vosso.
Eu não posso entender este segredo!
Qual a causa porque o poeta
receava ausentar-se de imaginar na infanta? Seria effectivamente por ver
quão distante della morria?
Mas não se lê na elegia 3.ª:
Uma cousa, Senhor, por certa
asselle:
Que nunca amor se afina, nem se apura.
Em
quanto está presente a causa delle?
Seria porque estava convencido de
que a infanta não era estranha ao seu desterro para as Molucas e castigava com tão
grave penitencia tão pequeno erro, como era o ter-lhe amor? Mas não diz elle na
canção 6.ª :
... Se tão longo c misero desterro
Vos dá contentamento,
Nunca me acabe nelle meu tormento?
Nota: Veja-se também o soneto 68,
já citado:
Dai-me
uma lei, Senhora, de querer-vos,
Porque
a guarde, sob pena de enojar-vos.
Agora a própria phantasia não assegura
o poeta de que não venha a aborrecer a infanta. É isso que elle leme.
É que
estas causas, que, por si sós, lhe não arrancariam do coração o seu alto pensamento,
começaram a avolumar-se, pela acção do magico veneno, que uma Circe, de celeste
formosura, lhe ia ministrando. E, sentindo os effeitos desse veneno, Camões assustava-se
com a ideia de olvidar a bem-amada. Como era possível que se lhe apagasse da
alma aquelle gesto tão soberano, que lhe havia mudado o ser, de humano em divino?
Como era possível que abandonasse aquelle seu pensamento, pelo qual teria morrido
contente?
Eu
não posso entender este segredo!
exclama o angustiado poeta. Mas o
veneno foi produzindo os seus effeitos e operou a receada transformação. Eis como
o poeta nos apresenta a estranha creatura, que se lhe apoderou do coração e dos
sentidos, a ponto de obliterar a imagem da infanta:
Um mover d’olhos, brando e piedoso,
Sem ver de quê; um riso brando e honesto,
Quasi forçado; um doce e humilde gesto,
De
qualquer alegria duvidoso;
Um despejo quieto e vergonhoso;
Um repouso gravíssimo e modesto;
Uma pura bondade, manifesto
Indicio da alma, limpo e gracioso;
Um encolhido ousar, uma brandura;
Um medo sem ter culpa, um ar sereno;
Um longo e obediente sofrimento:
Esta foi a celeste formosura
Da minha Circe, e o magico veneno,
Que pôde transformar meu pensamento.
(Soneto
35).
De quem se trata? Naturalmente de
alguma estonteadora formosura oriental, que, com a sua apparente impassibilidade,
tão profunda revolução produziu na alma do apaixonado adorador da infanta. Do que
me não resta duvida é de que o poeta trazia comsigo a seductora Circe, quando
naufragou na costa da Cochinchina, e ahi a viu perecer afogada, sem lhe poder valer.
E foi então que elle, ao exprimir a sua dor, attingiu o supremo grau na poesia lyrica».
In
José Maria Rodrigues, Camões e a Infanta Dona Maria, Separata do Instituto,
Imprensa da Universidade de Coimbra, Coimbra, 1910, há memória do
Mal-Aventurado Principe Real Luis Philippe (3 1761 06184643.2, PQ 9214.R64 1910.C1.Robarts/.
Cortesia
doAHistórico/UCoimbra/JDACT