«(…) Só se for debaixo das vossas
vestes..., ironizou Manuel I, perplexo, agastado, antes de acrescentar que o
problema não estava na protecção da jovem, mas na complexidade do assunto. Inquieto,
o rei quis saber quem era ela, como se chamava, donde provinha. Chama-se Raquel
Aboab e é filha de um converso que em tempos foi atirado para a fogueira,
respondeu calmamente Diogo Pacheco. Uma judia!, gritou o rei, desesperado.
Quereis abrasar uma embaixada e pôr fim ao meu prestígio?! Sem saber para onde
se virar ou o que fazer, carregado de ódio, Manuel I dirigiu-se enfim à porta
do salão, abriu-a de par em par e, voltando-se para o fidalgo, ordenou: saí e
esquecei o que vos pedi. Não quero loucos na comitiva, muito menos loucos a
falar ao papa. Imperturbável, Diogo Pacheco desobedeceu à ordem, sentou-se de
novo no banco e, num tom suave mas muito firme, propôs: tentemos um
entendimento sobre o assunto, meu senhor. Não!, bradou o rei. Peço-vos, Alteza.
Peço humildemente a vossa benevolência. Após alguns momentos de hesitação, o
monarca suspirou fundo, voltou a fechar as portas e a ocupar a sédia. Dizei
pois o que tendes para dizer sem abusar de mim, da minha paciência e da amizade
que nos une. E não vos esqueçais de que sou o rei de Portugal e de que vós sois
um mero vassalo. Sim, Alteza, sei que sou o vosso mais humilde servo, mas também
o melhor dos vossos cúmplices..., contrapôs o outro, pausadamente, com um sorriso
enigmático. Depois, outra vez com ar sério e muito calmo, prosseguiu: com
certeza expressei-me mal ao anunciar-vos o desejo de levar Raquel Aboab comigo.
Não era, nem podia ser, intenção minha integrá-la na comitiva. Conheço as
regras da corte, da política e os preceitos da Santa Madre Igreja. O que
pretendi foi apenas que autorizásseis a sua ida para Roma antes da partida da
vossa lustrosa embaixada.
E lá?, inquiriu o rei, um pouco
mais sereno. Lá, aguardará por mim. Um silêncio penumbroso abateu-se sobre a
sala. Manuel I apoiou a cabeça no espaldar da sédia, fixou, extático, um ponto
no tecto, até Diogo Pacheco, já mal contendo a paciência, decidir desabrigá-lo
daquele estado de alheamento a que se remetera por demorados instantes. Meu
senhor, interrogou de súbito, que decidis? Autorizais ou não a ida de Raquel
para Roma? O monarca gemeu algumas palavras imperceptíveis, desapoiou a cabeça e,
olhando de frente para o fidalgo, quis saber o que pretendia ele fazer com a
mulher na Cidade Santa. O mesmo que fazemos com outras aqui, na sede da
coroa... Ruborizado, mas sem perder a calma, Manuel I atalhou logo: pois...,
mas essa é judia. É verdade. E andais a servir-vos de uma judia? E Abraão
Zacuto, vosso distinto médico, não é judeu? Mas é médico. Que se serve de
judias..., troçou o nobre, sarcástico, no intuito de amenizar a conversa. Sim,
mas serve-se com saber e benevolência, defendeu atabalhoadamente o rei.
Além de médico, Abraão Zacuto era
ainda um ilustre matemático e astrónomo. Chegou mesmo a escrever o Almanach Perpetuum, tese que lhe
deu extraordinária notabilidade em Salamanca e Cartagena, onde, tempos antes,
os cristãos raramente dispensavam os seus ensinamentos em astronomia. E já em
Lisboa, para onde fora viver depois de expulso de Castela pelos reis católicos,
Manuel I não só introduziu na Universidade uma cadeira de Astronomia para ele
reger, como chegou a consultá-lo antes de enviar a expedição de Vasco da Gama à
Índia. Eu também sei como se tratam as jovens com saber e benevolência..., contrapôs
Diogo Pacheco, considerando depois, naquele seu jeito calmo mas de irritante
temperança, que Sua Alteza, tal como ele próprio ou Zacuto, sabia de igual modo
acolher as donzelas com extremo fascínio..., e muita afeição. Sois inteligente,
bom amigo, sois muito inteligente e eu sei aonde quereis chegar, prosseguiu
Manuel I, meneando a cabeça, tentando assim pôr termo a um diálogo incómodo
para ambos. Mas agora veio-me à ideia uma solução que poderia resolver o
problema: porque não se disfarça essa Raquel de homem, como no passado as
mulheres guerreiras? Diogo Pacheco deu de novo uma sonora gargalhada, ergueu o
sobrolho e disse, com o conhecimento e a elegância habituais, que o mundo
naqueles dias era já outro. E isso se devia aos heróicos marinheiros
portugueses que, em amorosa luta contra a morte, andavam pelos mares ignotos à descoberta
de outras terras, de grandes riquezas e novas culturas». In José Manuel Saraiva, Aos Olhos
de Deus, Oficina do Livro Editor, 2008, ISBN 978-989-555-364-8.
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