«(…) Fiquei a cogitar em como saberia
o mestre Bento tanto sobre cerejas, amores, apetites e moças de Coimbra, mas deixei
para depois a desconfiança. Leonor..., insisti, diz-me ele que Leonor rima com amor,
que é fresca e formosa, bonita e reservada e que lhe é penoso deixar de olhar para
ela tendo começado a olhar para ela. Será coisa séria? E de Isabel, a quem
chama Sibela e Belisa, trocando-lhes as letras para confundir? Diz que tem olhos
que por um brando movimento podem dar claridade à noite escura... Fala da mão, do
seio, do colo de alabastro... Chama-lhe meu sol, meu belo astro. Leonor,
Isabel..., ora, credo, Ana, não dês importância, já to disse. A condessa de Linhares,
dona Violante, cortará pela raiz todas as desatenções de Luís Vaz. Diz quem com
ela privou que é mulher fria como lâmina de espada. Quando quer uma coisa não se
resigna, e, por ora, quer a condessa ter um mestre à altura do futuro titular. Podes
crer que o encargo é tamanho que a condessa não lhe dará vagares para devaneios
amorosos. Em Xabregas, Luís Vaz há-de apenas ater-se à alta função para que foi
chamado. Não estou em crer que assim seja. Conheço o meu enteado como a palma das
minhas mãos e a cantiga do mestre Bento, que logo depois tornou a Coimbra, não me
aquietou. Para mal dos meus pecados e por mais que me pese dizê-lo, o muito que
lhe quero, ao invés de me toldar as vistas e a razão, faz com que melhor o enxergue:
Luís Vaz é o pecado em pessoa.
Violande
Andrade. Xabregas, 20 de Janeiro, 1544
Salvei-o dos braços de uma
meretriz. Confidenciou-me depois que queria esquecer o corpo da formosa Leonor que
desflorou em Coimbra por detrás do roseiral. Dei-lhe um ofício. Sendo justa,
devo confessar que o meu Antoninho o vê como um pai. Segue Luís Vaz por todo o lado,
tentando imitar-lhe as rimas. Com ele aprendeu os grandes poetas gregos e latinos,
e até João Barros e Francisco Morais pasmam com os conhecimentos que já revela.
Dou graças a Deus Nosso Senhor que assim me quis ponderada e fria. Ninguém me derrete
o coração, porém com Luís Vaz..., arrisco. E o risco é tão ténue e fino que quase
me dá ganas de o sufocar. Em tudo o que faço uso os sentidos sem peneira, mas jamais
consinto que o amor em mim se instale de modo a que de mim verta. Foi em certo
sarau em minha casa que tudo se precipitou. Vi-me sentada ao lado do mestre e deixei
propositadamente cair um livro. Quando me curvei, pretendendo apanhá-lo, senti a
mão de Luís Vaz roçar na minha; depois, uns olhos azul-escuros vieram roubar a luz
dos meus. Daí até o ter deixado entrar no meu leito para descobrir as ruas e vielas
do meu corpo foi um pequeno passo. Dei graças por estar o senhor conde, meu marido
ausente em Paris. Luís Vaz é em tudo raro. Não o amo, digo e repito que, em mim,
o coração mora sempre num beco que os sentidos não visitam. Diz ele que é um homem
feito de carne e de sentidos, que em várias flamas variamente arde, mas se amar
é verbo que não posso nem quero conjugar, já os sentidos nos seus vários tempos
e modos em vária chama me ardem». In Maria João Lopo Carvalho, Oficina do
Livro, LeYa, 2016, ISBN 978-989-741-488-6.
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