«(…) Depois a morte do conde dos
Arcos, os desmaios, e até el-rei todo debruçado, batendo com a mão no
parapeito, gritava na confusão, e o capelão da Casa dos Arcos que tinha corrido
a buscar a extrema-unção. Ela, Hilária ficara atarracada de pavor: sentia os
urros dos bois, os gritos agudos das mulheres, os ganidos dos flatos, e vira
então um velho, todo vestido de veludo preto, com a fina espada na mão…,
debater-se entre fidalgos e damas que o seguravam, e querer atirar-se à praça,
bradando cheio de raiva! É o pai do conde. Ela então desmaia nos braços de um
padre da Congregação. Quando veio a si, achou-se junto da praça; a berlinda
real está à porta com os boleeiros emplumados, os machos cheios de guizos, e os
batedores com pampilhos: el-rei já estava dentro, escondido no fundo, pálido,
sorvendo febrilmente rapé, todo encolhido com o confessor; e defronte, com uma
das mãos apoiadas à alta bengala, forte, espadaúdo, com o aspecto carregado o marquês
de Pombal falando devagar e intimativamente, e gesticulando com a luneta: mas
os batedores picaram, os estalos dos postilhões retiniram, e a berlinda partiu
a galope, enquanto o povo gritava: viva el-rei, nosso senhor!, e o sino da porta
da capela do paço tocava a finados! Era uma honra que el-rei concedia à Casa
dos Arcos.
Quando dona Hilária acabou de
contar, suspirando, estas desgraças passadas, começou-se a jogar. Era singular
que Macário não se lembrava o que tinha jogado nessa noite radiosa. Só se
recordava que ele tinha ficado ao lado da menina Vilaça, que se chamava Luísa,
que reparara muito na sua fina pele rosada, tocada de luz, e na meiga e amorosa
pequenez da sua mão, com uma unha mais polida que o marfim de Diepa. E
lembrava-se também de um acidente excêntrico, que determinara nele, desde esse
dia, uma grande hostilidade ao clero da Sé. Macário estava sentado à mesa, e ao
pé dele Luísa: Luísa estava toda voltada para ele, com uma das mãos apoiando a
sua fina cabeça loura e amorosa, e a outra esquecida no regaço. Defronte estava
o beneficiado, com o seu barrete preto, os seus óculos na ponta aguda do nariz,
o tom azulado da forte barba rapada, e as suas duas grandes orelhas,
complicadas e cheias de cabelo, separadas do crânio como dois postigos abertos.
Ora como era necessário no fim do jogo pagar uns tentos ao cavaleiro de Malta,
que estava ao lado do beneficiado, Macário tirou da algibeira uma peça, e
quando o cavaleiro, todo curvado e com um olho pisco, fazia a soma dos tentos
nas costas de um ás, Macário conversava com Luísa, e fazia girar sobre o pano
verde a sua peça de ouro, com um bilro ou um pião. Era uma peça nova que luzia,
faiscava, rodando e fazia à vista como uma bola de névoa dourada. Luísa sorria
vendo-a girar, girar, e parecia a Macário que todo o céu, a pureza, a bondade
das flores e a castidade das estrelas estavam naquele claro sorriso distraído,
espiritual, arcangélico, com que ela, gira, gira, seguia o giro da peça de ouro
nova. Mas, de repente, a peça, correndo até à borda da mesa, caiu para o lado
do regaço de Luísa, e desapareceu, sem se ouvir no soalho de tábuas o seu ruído
metálico. O beneficiado abaixou-se logo cortesmente: Macário afastou a cadeira,
olhando para debaixo da mesa: a mãe Vilaça alumiou com um castiçal, e Luísa
ergueu-se e sacudiu com pequenina pancada o seu vestido de cassa. A peça não
apareceu.
É célebre, disse o amigo de
chapéu de palha. Eu não ouvi tinir no chão. Nem eu, nem eu, disseram. O
beneficiado, curvado como um F, buscava tenazmente, e Hilária mais nova rosnava
o responso de Santo António. Pois a casa não tem buracos, dizia a mãe Vilaça. No
entanto Macário exalava-se em exclamações desinteressadas: pelo amor de Deus!
Ora que tem! Amanhã aparecerá! Tenham a bondade! Por quem são! Então menina
Luísa! Pelo amor de Deus! Não vale nada. Mas mentalmente estabeleceu que
houvera uma subtracção, e atribui-a ao beneficiado. A peça rolara, decerto, até
junto dele, sem ruído, ele pusera-lhe em cima o seu vasto sapato eclesiástico e
tachado, depois, no movimento brusco e curto que tivera, empolgara-a vilmente.
E quando saíram, o beneficiado, todo embrulhado no seu vasto capote de camelão,
dizia a Macário pela escada: ora o sumiço da peça, hem? Que brincadeira! Acha,
senhor beneficiado?, disse Macário parando, absorto de impudência.
Ora essa! Se acho! Se lhe parece!
Uma peça de sete mil réis! Só se o Senhor as semeia! Safa! Eu dava em doudo! Macário
teve tédio daquela astúcia fria. Não lhe respondeu. O beneficiado é que
acrescentou: amanhã mande lá pela manhã, homem. Que diabo... Deus me perdoe! Que
diabo! Uma peça não se perde assim. Que bolada, hem! E Macário tinha vontade de
lhe bater. Foi neste ponto que Macário me disse, com a voz singularmente sentida:
enfim, meu amigo, para encurtarmos razões resolvi-me casar com ela. Mas a peça?
Não pensei mais nisso! Pensava eu lá na peça! Resolvi-me casar com ela!» In Eça de Queirós, Singularidades de uma rapariga loura,
1873-1874, Contos, 1901, Sopa de Letras, 2013, ISBN 978-972-870-878-8.
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