«(…) Não fiques assim, Ana, não é
caso para tanto!, disse Bento, arrancando-me ao redemoinhar das memórias e dando
à voz um tom terno e paternal. O moço, ainda que doidivanas, é senhor de um saber
refinado. Acaso cuidavas que Luís Vaz serviria na ilustre Casa de Linhares se não
mostrasse um conhecimento profundo do latim, das línguas vivas e das ciências
modernas? Como pode ele ter tantos saberes se pouco assistiu às lições? Alguma coisa
não está conforme, Bento. Meu cunhado, que era de réplica pronta, atirou-me com
uma escusa que não me persuadiu: escuta, comadre. Luís Vaz não era moço de frequentar
as lições dos mestres, mas, como te disse, não foram raras as vezes que o vi horas
a fio na livraria da universidade. Dizem que ao tocar das matinas já por lá andava
perdido nas leituras. Clássicos e modernos, de tudo tomou conhecimento. Quando o
inquiria sobre os propósitos de semelhante assiduidade à livraria e tão pouca às
lições, a resposta era sempre a mesma: é o tédio, tio Bento, para quê ouvir dos
outros o que por mim só posso aprender? E o saber de experiência feito, tio Bento,
pois não achais que, conjugando experiência e engenho, mais se alcança? Luís Vaz
era avesso às rotinas da universidade, folgava com a rapaziada até altas horas em
lugar de se recolher e, pela madrugada, depois de uma noite em claro, rumava à livraria.
Bastas vezes o vi eu, já o Sol ia alto, a cabecear em cima da estante.
Em nada daquela narrativa podia eu
achar consolo. Estava o tio a pagar-lhe os estudos e andava o rapaz a vaguear noite
dentro? Não te inquietes, Ana Sá. Estou seguro de que a condessa de Linhares o há-de
domar. Tenho por certo que no Palácio de Xabregas vai Luís Vaz aprofundar os seus
saberes. A livraria dos condes é de tal sorte valiosa que muito o irá deleitar.
Ele que tenha tino e lá se fará erudito. Queira Deus que assim seja! Tinha mais
inquietações e não podia ir-me dali sem respostas. E uma tal de Leonor, mestre
Bento, alguma vez ouvistes falar de semelhante? E a prima Isabel? Tantos versos
lhes vi dedicados... Insisti, porque era coisa que me inquietava. Luís Vaz deixara
amores dependurados nas margens do Mondego; iria tentar recolhê-los? Iria a saudade
recambiá-lo para Coimbra, abandonando a casa dos condes? "Veja-me estas rimas,
mestre Bento, posso não ser erudita, mas percebo o bastante para lhes ver grande
sentimento.
Rebusquei nas dobras do saio e estendi-lhe
o caderno com a caligrafia apaixonada e inconfundível do meu Luís Vaz. Por ali escorria,
em letra miúda, um não-mais-acabar de cantigas, romances, vilancetes, em redondilhas
de cinco e sete sílabas, já quase fora de moda, e sonetos, sobretudo sonetos no
novo estilo tão em voga.
Este amor que vos tenho, limpo e puro,
de pensamento vil nunca tocado,
em minha tenra idade começado,
tê-lo dentro desta alma só procuro.
Ora, comadre, Leonores, Margaridas,
Rosas, Beatrizes, Isabéis..., parece que as estou a ver a passarem-me assim de perfil,
todas igualmente deliciosas! Deitou um olhar fugidio às rimas, devolvendo-me logo
o caderno. As moças de Coimbra são como as cerejas: colhe-se a primeira, tem-se
logo vontade da segunda e da terceira... Difícil é parar. Sabes hem que Luís Vaz
é um mancebo que atrai os olhares e as atenções. Que todos os males sejam esses,
comadre..., pois pecará carnalmente e tornará a pecar, se for só com essas moças
e se for cumprindo com a confissão não virá daí mal ao mundo». In
Maria João Lopo Carvalho, Oficina do Livro, LeYa, 2016, ISBN 978-989-741-488-6.
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