Cochim
«(…) O Terríbil conhecia
bem a Índia e sabia como e manter, concorda o capitão. Mais do que pela força
das armas, as terras conquistadas só quedariam em nosso poder se tivéssemos
gente nossa a viver nelas e a criar raízes. Para tal havia mister de mulheres
e, à míngua de portuguesas, decidiu lançar mão das cativas mouras e das
gentias. António Real ganhou-lhe um ódio mortal e buscou por todos os meios
fazê-lo cair em desgraça, intrigando junto dos fidalgos e capitães da Índia do
partido do vizo-rei Francisco Almeida, que era também inimigo do governador. Feia
aleivosia!, indigna-se o mercador. A inveja e a inimizade que os portugueses
têm uns aos outros dão quase sempre causa a que se danem os negócios
importantes, sobretudo quando topam com alguém que trabalha para o bem de todos
e da nação. Lembro-me dessa guerra entre o governador e o vizo-rei, porque
Afonso Albuquerque lhe requeria o governo da Índia e Francisco Almeida
recusava-se a entregar-lho, apesar de ter terminado o seu mandato e das ordens
de Manuel I para lho largar. Castanho, que servira como soldado da armada no
tempo em que Albuquerque ainda era capitão-mor, recorda com alguma amargura: Francisco
ficara muito ufano pela sua grande vitória sobre os rumes e trabalhara
muito para que os capitães e fidalgos seus amigos escrevessem a el-rei Manuel I
uma carta assinada por todos pedindo para ele continuar como vizo-rei da Índia.
Contudo, pior do que a oposição dos fidalgos que não queriam perder os seus
privilégios, foi a conspiração do bando de Cochim, com o António Real à cabeça,
que lhe levantou falsos testemunhos de roubos e conluios com os reis mouros e
gentios, mal Albuquerque entrou no cargo de governador. El-rei Manuel I, que Deus
tenha em sua glória, era mui crédulo e deu razão aos mexeriqueiros, causando
tamanha paixão ao Terríbil que lhe apressou a morte.
As conversas são como as cerejas,
cogita Fernão, puxa-se uma e vem logo uma dúzia atrás: Diu e Cochim, Iria e
Real, Francisco Almeida e Afonso Albuquerque! Do Terríbil, sabia algumas
histórias ouvidas na casa do senhor Jorge, que atribuía as razões da
animosidade de Manuel I para com Albuquerque, por este ter sido estribeiro-mor,
amigo e admirador de João II. O Venturoso, assim que subira ao trono
começara a desfazer tudo o que o cunhado fizera e a afastar todos os homens da
sua confiança. Albuquerque só pensava no serviço d’el-rei e do reino, não deixando
essa gente roubar como queria. Ele nunca guardou nada para si, toda a gente
sabe isso na Índia!,-volve o aveirense que sentia muita sanha dos oficiais e fidalgos
que se dedicavam ao corso e ao comércio privado, em vez de se empenharem na
defesa da Fazenda d'el-rei. …'té os presentes e jóias que os sultões lhe
ofereciam ele enviava a Manuel I ou à rainha dona Maria. Podia ter ficado podre
de rico, como quase todos os que para cá vêm com ofícios e cargos da Coroa, mas
morreu sem nada, pedindo a el-rei para lhe proteger o filho!
Os de agora fazem o mesmo,
comenta um tratante (mercador), natural de Ormuz que falava bem português. Castanho
concorda: esses capitães e feitores roubavam tanto que Albuquerque, quando tomou
posse da governação da Índia, nem dinheiro tinha para a mantença e soldos dos
homens que andavam nas batalhas, chegando a oferecer as suas barbas, a uns
ricos mercadores gentios, como penhor de um empréstimo, a fim de lhes pagar. O
mercador de Aveiro acrescenta, como quem conhece bem aqueles sucessos: vendo
que o governador tomava Goa para fazer dela a capital da Índia, António Real e
o seu bando moveram céu e terra para que el-rei ordenasse o seu abandono, pois
só assim Cochim poderia manter a sua importância e eles os seus privilégios e
proveitos. Albuquerque sabia bem o que se devia fazer para governar e conservar
a Índia, contrapõe Castanho. Não desistiu de Goa, porque em todo o Malabar não
havia outro porto que se lhe pudesse comparar para manter vigia sobre os mouros
guzarates. Muito me prazeria conhecer essa história de Cochim e da inimizade de
Albuquerque com o vizo-rei assim como com António Real e o seu bando, roga
Fernão. E a de Iria Pereira e do seu filho também, suplica a mulher, já que vossa
mercê abriu o apetite à minha curiosidade, pelo modo como sabe contar uma
história, que até parece que estamos lá a ver e a ouvir». In Deana Barroqueiro, O Corsário
dos Sete Mares, Casa das Letras, Oficina do Livro, 2012, ISBN
978-972-462-117-3.
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