«(…) Onze anos depois, casavam. Estava nessa altura Francisco Teixeira no seu
apogeu de sedutor, e não se dispunha a abdicar da sua liberdade de galaroz, as
feiras, as noitadas, as amásias, quase sempre de boa nascença, raparigas de
primeira mão, bonitas e muito assopapadas de paixão por ele. As mulheres
perseguiam-no, vigiavam-no, confiando no ciúme umas das outras para o privar
duma preferência fatal que lhes arrebatasse as esperanças para sempre. Os seus
amores com Maria passaram despercebidos, tanto ele temia o escândalo das
rivais, mais pelas suas lágrimas que pelas suas ameaças. Porque ele era afinal um
fraco, teria casado com todas as moças que o fitassem com belos olhos
marejados, acobardava-se, prometia, enredava-se nas mais ingénuas ciladas do
amor, se a mulher se lhe apresentasse como uma vítima indefesa e se lhe
rendesse. Com Maria, porém, foi diferente. Havia duas semanas que estavam
casados e ela continuava, sigilosamente, em casa dos pais, sem que entre ambos
houvesse mais do que os cumprimentos reservados, contrafeitos, de noivos por
contrato. Ele amava-a, não teria escolhido nenhuma outra, porque se lhe fixara
na alma o romanesco da sua promessa à criança ponderada e austera que ele
encontrara uma vez esforçando-se por saltar sozinha a cachoeira, desafiando o
seu próprio receio. Maria não mudara nada; era a mesma menina que sob o orgulho
oculta uma lealdade sem limites, e possuía essa afeição dos tímidos que
erradamente se confunde com velhacaria; fizera-se uma bela mulher, com
o acréscimo vantajoso dum dote de dois moinhos e algumas ramadas, educara-se na
sujeição e no trabalho, descendia duma tribo de gente prudente e casta. Sem
dúvida que Francisco Teixeira a apreciara como um achado raro e se decidira sem
hesitação a adquiri-la com todas as garantias legais. Mas todas as outras que
choravam a seus pés, que se embalavam no seu regaço e se desgrenhavam cheias de
apaixonados zelos, e lhe surgiam nas encruzilhadas, desfalecidas de pranto, e
lhe rondavam a porta, com agonias de raiva no coração? Isto prolongou-se algum
tempo ainda, até que Maria, assediada como Penélope pelos romeiros dos dotes, aos
domingos, corrida pelas chufas das irmãs que a achavam mona e a apontavam aos
namorados como exemplo doentio de altivez, abalou um belo dia.
Tão séria! É para casar rica?, gritou-lhe Balbina vendo-a
cruzar a eira, descalça e com a roupa de cotio, mas levando no pescoço o seu
cordão de ouro, donde pendia um pequeno crescente de filigrana. Maria olhou a
irmã, que era ruiva e cuja cabeça parecia fosforejar como o cobre, vista
através da névoa das suas lágrimas que apenas tinham assomado e se recolhiam sob
a rápida pressão das pálpebras. Cantés!, disse, com voz sonora. E deitou a
correr. Essa mesma noite a casa da Vessada recebeu a sua nova ama. Nem um só
dia Francisco Teixeira alterou os seus hábitos e os seus princípios de boémia,
e, se abandonava velhos amores, era para sem tardança os substituir. Houve um recrudescer de
intrigas e paixões à sua volta, pois as mulheres pareciam vingar a traição
daquele casamento, infligindo à escolhida a tortura do abandono, o tributo do
ciúme, as impaciências iradas dos que orgulhosamente amam. Uma delas
representara uma ligação mais séria, burguesa prendada como era, soberba da sua
posição e haveres, criada no desleixo dum lar sem mãe, porque a sua, única
legítima da casa de Borba, finara-se muito
cedo, deixando a menina, que engatinhava apenas, nas sombras das saias de amas
e governantas pingueiras, que mal cuidavam em escamar-lhe a ramela e
engomar-lhe os esbicados dos calções de baptista que assomavam sob os vestidos
curtos de baetilha cor de morango. Chamava-se Isidra, a moça; era de tipo
majestoso, com uma cabeleira cuja opulência gostava de exibir ao retratar-se
enrolando a trança como uma boa». In Agustina Bessa
Luís, A Sibila, 1954, Relógio d’Água, 2017, ISBN 978-989-641-747-5.
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