domingo, 12 de novembro de 2017

A Sibila. Agustina Bessa Luís. «Nem um só dia Francisco Teixeira alterou os seus hábitos e os seus princípios de boémia, e, se abandonava velhos amores, era para sem tardança os substituir»

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«(…) Onze anos depois, casavam. Estava nessa altura Francisco Teixeira no seu apogeu de sedutor, e não se dispunha a abdicar da sua liberdade de galaroz, as feiras, as noitadas, as amásias, quase sempre de boa nascença, raparigas de primeira mão, bonitas e muito assopapadas de paixão por ele. As mulheres perseguiam-no, vigiavam-no, confiando no ciúme umas das outras para o privar duma preferência fatal que lhes arrebatasse as esperanças para sempre. Os seus amores com Maria passaram despercebidos, tanto ele temia o escândalo das rivais, mais pelas suas lágrimas que pelas suas ameaças. Porque ele era afinal um fraco, teria casado com todas as moças que o fitassem com belos olhos marejados, acobardava-se, prometia, enredava-se nas mais ingénuas ciladas do amor, se a mulher se lhe apresentasse como uma vítima indefesa e se lhe rendesse. Com Maria, porém, foi diferente. Havia duas semanas que estavam casados e ela continuava, sigilosamente, em casa dos pais, sem que entre ambos houvesse mais do que os cumprimentos reservados, contrafeitos, de noivos por contrato. Ele amava-a, não teria escolhido nenhuma outra, porque se lhe fixara na alma o romanesco da sua promessa à criança ponderada e austera que ele encontrara uma vez esforçando-se por saltar sozinha a cachoeira, desafiando o seu próprio receio. Maria não mudara nada; era a mesma menina que sob o orgulho oculta uma lealdade sem limites, e possuía essa afeição dos tímidos que erradamente se confunde com velhacaria; fizera-se uma bela mulher, com o acréscimo vantajoso dum dote de dois moinhos e algumas ramadas, educara-se na sujeição e no trabalho, descendia duma tribo de gente prudente e casta. Sem dúvida que Francisco Teixeira a apreciara como um achado raro e se decidira sem hesitação a adquiri-la com todas as garantias legais. Mas todas as outras que choravam a seus pés, que se embalavam no seu regaço e se desgrenhavam cheias de apaixonados zelos, e lhe surgiam nas encruzilhadas, desfalecidas de pranto, e lhe rondavam a porta, com agonias de raiva no coração? Isto prolongou-se algum tempo ainda, até que Maria, assediada como Penélope pelos romeiros dos dotes, aos domingos, corrida pelas chufas das irmãs que a achavam mona e a apontavam aos namorados como exemplo doentio de altivez, abalou um belo dia.
Tão séria! É para casar rica?, gritou-lhe Balbina vendo-a cruzar a eira, descalça e com a roupa de cotio, mas levando no pescoço o seu cordão de ouro, donde pendia um pequeno crescente de filigrana. Maria olhou a irmã, que era ruiva e cuja cabeça parecia fosforejar como o cobre, vista através da névoa das suas lágrimas que apenas tinham assomado e se recolhiam sob a rápida pressão das pálpebras. Cantés!, disse, com voz sonora. E deitou a correr. Essa mesma noite a casa da Vessada recebeu a sua nova ama. Nem um só dia Francisco Teixeira alterou os seus hábitos e os seus princípios de boémia, e, se abandonava velhos amores, era para sem tardança os substituir. Houve um recrudescer de intrigas e paixões à sua volta, pois as mulheres pareciam vingar a traição daquele casamento, infligindo à escolhida a tortura do abandono, o tributo do ciúme, as impaciências iradas dos que orgulhosamente amam. Uma delas representara uma ligação mais séria, burguesa prendada como era, soberba da sua posição e haveres, criada no desleixo dum lar sem mãe, porque a sua, única legítima da casa de Borba, finara-se muito cedo, deixando a menina, que engatinhava apenas, nas sombras das saias de amas e governantas pingueiras, que mal cuidavam em escamar-lhe a ramela e engomar-lhe os esbicados dos calções de baptista que assomavam sob os vestidos curtos de baetilha cor de morango. Chamava-se Isidra, a moça; era de tipo majestoso, com uma cabeleira cuja opulência gostava de exibir ao retratar-se enrolando a trança como uma boa». In Agustina Bessa Luís, A Sibila, 1954, Relógio d’Água, 2017, ISBN 978-989-641-747-5.

Cortesia de Rd’Água/JDACT