«(…)
Foi o bolo, disse a avó. Ele comeu bastante e depois foi nadar. Quantas vezes
lhe disse, para não se meter na água sem ter a digestão feita. Vá, meu filho,
insistiu a Maria. Está aqui um chazinho de poejo que é calmante para o
estômago. Vá lá, meu querido. Meta-se na caminha que amanhã está bom. Durma que
lhe faz bem. Logo passo, a trazer-lhe uma aguasinha de arroz. Não exageres,
Maria. Foi só uma paragem de digestão. Ele é um homem, não é um bebé. E saíram
e deixaram-me sozinho na penumbra, no espanto, no deslumbramento. Ele é um
homem. Sim, um homem. Por mais confuso, desorientado, desencontrado de mim, um
homem. Por mais desprevenido para me receber, um homem. Mas, mesmo para um
homem, a mistura fora forte de mais: o bolo de chocolate, o sol, o banho, as
mãos morenas do Tinito. Um rasgão no peito, uma saudade de mim. Voo, oxálida,
miligrã.
Vem-me
aquela cena à memória, agora, nesta hora difícil de voltar para casa com o
pecado escrito na testa. Com o apartamento em obras por causa do casamento cada
vez mais próximo, estou a viver, malgré moi, em casa dos meus pais. Não, irá
faltar a minha mãe, estás com uma cara esquisita, o que é que aconteceu? Porque
é que não vieste dormir? Porque é que não avisaste? Com a Raquel sei que não
estiveste porque ela já ligou duas vezes, diz que tinham combinado ir ao Museu
de Arte Antiga por causa daquele trabalho dela para a tese de licenciatura,
está em pânico, nestes tempos que correm nunca se sabe quando uma pessoa é
assaltada, ou tem um acidente ou é presa, sim, presa, por engano, ou droga, ou
álcool, ou rusga, sabe-se lá o que é que tu andas a fazer. Mãe, importa-se de
não se meter na minha vida? Tenho vinte e seis anos, mãe. Mas estás cá em casa,
não estás? Se te dou cama, mesa e roupa lavada tenho o direito de fazer
perguntas. E agora vais onde? É sábado, não tens aulas. E não inventes que eu
não aturo mentiras. E liga à Raquel.
Fecho-me
no quarto, os automóveis miniatura nas prateleiras, o póster do Ayrton Sena,
dos U2, os vídeos da vida animal, o computador avariado, o roupão da
adolescência pendurado atrás da porta, curto nas mangas, o ursinho da infância
escondido por cima do monopólio. O meu quarto de rapaz, o meu quarto de não
saber quem era, o meu quarto cheio de dúvidas, de perguntas sem resposta, de
solidão. Não é o sítio ideal para pôr as ideias em ordem, mas mesmo assim
consigo algum silêncio no meu ruído interior. Duas certezas avultam e
martelam-me a cabeça. A primeira é que não posso casar com a Raquel. A segunda
é que tenho que me agarrar à minha tentativa de romance como única terapia para
as minhas dores. O livro mais que o casamento. Como se o casamento fosse um
assunto arrumado. Mas não é. Parece fácil dizer à Raquel que é melhor não
casarmos. Presume-se que um casamento deverá ter à partida um mínimo de
condições para a felicidade: cumplicidade, amor, gostos semelhantes, sonhos
comuns, atracção sexual, por esta ou por outra ordem, é-me indiferente, visto
que entre nós não existe nenhuma delas. Como foi então que chegámos aqui? Quem
é a Raquel? O que faz ela na minha vida? Até a nossa amizade é deficiente.
Mentimos constantemente um ao outro, gostamos de nos apanhar mutuamente em
falta, embirramos com pequenas coisas, a forma de pronunciar uma palavra, a
maneira de usar um cachecol, os respectivos tipos de leitura.
Depois,
outras que não confessamos: a mim irrita-me o trejeito com que mastiga, por
exemplo, uma noz, com os dentinhos da frente, como os esquilos, ou o jeito
dominador com que pega na faca, com o polegar e o indicador quase a chegarem à
lâmina. Não gosto de a ver comer as maçãs, à mesa, com a casca, isto não é uma
questão de boas maneiras, se eu estivesse apaixonado por ela havia de considerar
um gesto são, bucólico, orgânico, mas é que lhe sai sumo pelos cantos da boca e
ela limpa-se ao guardanapo, sem ter o bom senso de pegar num guardanapo de
papel, põe nódoas indiscriminadamente em guardanapos de pano, se eu digo alguma
coisa a minha mãe defende-a logo, deixa-te de mariquices, para isso é que se
inventaram os detergentes. Há quanto tempo dura a Raquel em casa dos meus pais?
Primeiro como hóspede permanente quando os pais dela morreram num acidente de
automóveis em cadeia e se concluiu que a Raquel, filha única, não tinha mais
ninguém no mundo senão aqueles amigos dos pais, isto é, os meus pais, que
também só tinham um filho único com apenas mais dois anos do que ela. Viveu
connosco mas não era sequer uma boa irmã. E um dia descobri que éramos noivos
sem termos sequer sido namorados. A minha mãe cozinhou este noivado em lume
brando. Eu sei porquê, claro que eu sei porquê. Porque era preciso casar-me.
Antes que eu, antes que alguém percebesse, antes que houvesse a mais pequena
suspeita... Eu nunca tinha namoradas, só amigos e mesmo assim poucos amigos. E
as mães, que fingem sempre que não percebem, são as primeiras a saber». In
Rosa Lobato Faria, A Alma Trocada, Edições ASA, Autores Contemporâneos de
Língua Portuguesa, Porto, 1a edição, 2007, ISBN 978-972-415-283-7.
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