«(…) Eu só estava admirando a
estátua, falara eu, depressa. A pessoa que a encontrou e trouxe para a
Inglaterra deve ter sofrido uma senhora maldição dos faraós... Um antepassado
meu. O primeiro lorde Moselane. Para meu espanto, James parecia ter-se
esquecido por completo do nosso encontro anterior. Na
realidade, o seu sorriso sugeria que eu era exactamente o tipo de mulher que
ele esperava conhecer naquela noite. Morreu tranquilo, dormindo, aos 92 anos.
Pelo menos gostamos de pensar assim. Ele apertara a minha mão e não se
apressara em largá-la. Muito prazer. Na verdade... Recolhera a mão com relutância.
Nós nos encontrámos no ano passado. Em frente à Blackwell’s. Antes mesmo de as
palavras saírem da minha boca, a minha honestidade traiçoeira havia-me arrancado
uma careta. Poucos segundos bastaram para as peças se encaixarem na cabeça de
James, e não foi algo bonito de se ver. Ah, sim, dissera ele devagar. Sim, sim,
sim...
Mas a palavra escrita
nos seus olhos cor de mel era justamente o contrário. De facto, nos meses
subsequentes, toda a vez que nos encontrávamos obedientemente para um café,
sempre convocados por Katherine Kent, a primeira pergunta de James E sua mãe,
como vai?, dava o tom da nossa conversa e me fazia lembrar por que os nossos
cafés nunca se transformavam em almoços. Ele era atencioso, sim, e de vez em
quando olhava-me de um jeito que fazia o meu corpo estremecer de esperança. Mas
de modo geral continuava a tratar-me com todo o cavalheirismo, como se eu fosse
uma donzela intocável que ele houvesse jurado proteger. Talvez fosse por causa
da minha mãe. Ou talvez fosse por James ter nascido, como o meu pai certa vez
descrevera tão bem, com um berço de ouro enfiado no cu. Para manter a pureza do
sangue azul, essas coisas. Nesse caso, eu poderia refinar o meu estilo quanto
quisesse, mas o filho de lorde Moselane jamais pensaria que éramos da mesma espécie.
Fui despertada do meu
devaneio na mesa dos docentes pela mão de alguém levando embora o prato com
minha entrada intacta. Ao meu lado, sentado com a cabeça baixa como quem reza,
James conferia o telefone móvel por baixo do guardanapo engomado. Enfiei a mão
na bolsa com discrição, peguei na foto do sr. Ludwig e estendi para ele. O que
acha disto aqui? James inclinou-se para olhar. Datação aproximada? Uns dez
dias, eu diria, a julgar pelo canto amassado e pelas bordas roídas, brinquei. Quanto
à inscrição..., eu não sei nada. Ele estreitou os olhos; era óbvio que estava
intrigado. Quem lhe deu isso? Um homem misterioso. Ele disse-me que essa foto é
uma prova de que as amazonas existiram mesmo..., falei, com um tom dramático deliberado. O que é
isso? Katherine Kent esticou o braço, arrancou a foto da minha mão e a examinou
à luz de uma vela. Onde esta foto foi tirada? Não tenho a menor ideia.
Surpresa e feliz com
o interesse dela, relatei depressa os pontos altos do meu bizarro encontro
daquela tarde. Quando repeti a afirmação do sr. Ludwig sobre o alfabeto amazónico
ainda não decifrado, porém, James recostou-se na cadeira e grunhiu. Que
irritante! Katherine devolveu-me a foto com o cenho franzido, contrariada. Isso
pode ser em qualquer lugar. Se pelo menos a gente soubesse o nome da fundação
desse sujeito... Encolhi-me diante do seu olhar raivoso. Estava claro que ela
me culpava por não ter extraído mais informações do sr. Ludwig, e tinha razão. Acho
que o escritório deles fica em Amsterdão, falei. Porque é para lá que ele
queria que eu fosse. E isso tem alguma importância?, interrompeu James. Porque é
lógico que você não vai...
Na verdade, eu quase disse sim, contrapus, incapaz de resistir à
tentação de implicar com ele. Não é todos os dias que um desconhecido na rua me
oferece 5 mil dólares... Exacto. Ele encarou-me com um olhar de censura. Um
desconhecido na rua. E isso faz de você o quê? Sorri, lisonjeada por ele levar
a história tão a sério. Uma curiosa, respondi. James balançou a cabeça, e
decerto teria feito mais algum comentário negativo não fosse Katherine ter
exercido o privilégio dos génios e levantado a mão para nos silenciar. E ele
disse que a encontraria no aeroporto? Perplexa com a gravidade do seu tom,
limpei a garganta com um pigarro. Creio que sim. James não conseguiu mais
permanecer calado. Não está incentivando Morg a pegar um avião com esse tal... sr.
Ludwig, está?, perguntou, embolando o guardanapo na mão. Só Deus sabe o que ele
está tramando... Katherine recostou-se na cadeira com um movimento brusco. É
claro que não! Deixe de ser bobo. Só estou tentando entender o que está acontecendo...,
quem são essas pessoas». In Anne Fortier, A Irmandade Perdida, 2014, Editora
Arqueiro, 2015, ISBN 978-858-041-543-0.
Cortesia de EArqueiro/JDACT