Holanda
«(…)
Não penso na minha alma, diria ele, nem na carne. Não me ponho a perguntar se
ganharei a salvação. Eu preciso de amor. Preciso aprender. Mas parece que na comunidade
já tudo se aprendera, estava tudo ensinado e sabido desde sempre. E os homens
pensavam unicamente em preservar-se do sofrimento; desejavam que a linguagem ficasse
intacta, sem mácula. Ele olhava o sol verde entre as patas das vacas e supunha
poder envenenar-se legando o cadáver à confusão holandesa. E como se alimentaria
essa confusão, como seria divertido o pequeno quadro holandês! Senhor, que lhe
aconteceu? Salva-lhe a alma se puderes. Ele era um estrangeiro: envenenou-se.
Nada mais sabemos. Que mal te fez a Holanda para a castigares assim? Muito
lentamente, o seu amor desenvolveu-se. Era um amor que se aprendia a si próprio,
cheio de medo e dúvida. O nosso amor pode atingir tudo?, perguntava. Ou
perguntava então: até onde vão os direitos de um... homem? Ou de um poeta? Na Holanda não se fazem fogueiras ao ar
livre: nada se percebe do fogo. A Holanda é um país cada vez maior. O mar
rouba-lhe meio metro, e logo os holandeses roubam dois metros de terra ao seio
fervente das águas. Não compreendo a justiça cósmica. E murmura para si: nada
conhecem das coisas do fogo. Os dons mais profundos do homem estiolam dentro deles.
Deverei amá-los? Amar o quê, quem?, pergunta a visita. Referes-te aos homens
holandeses ou aos dons que esqueceram? E ele não sabe realmente aquilo a que
desejava referir-se, o que lhe inspirava o desespero. Sentado na Holanda, pensa:
piedade. Para ele? Para os homens holandeses? Em que jogos se enreda uma inocência!
Teoria das Cores
Era
uma vez um pintor que tinha um aquário com um peixe vermelho. Vivia o peixe
tranquilamente acompanhado pela sua cor vermelha até que principiou a tornar-se
negro a partir de dentro, um nó preto atrás da cor encarnada. O nó
desenvolvia-se alastrando e tomando conta de todo o peixe. Por fora do aquário
o pintor assistia surpreendido ao aparecimento do novo peixe. O problema do
artista era que, obrigado a interromper o quadro onde estava a chegar o
vermelho do peixe, não sabia que fazer da cor preta que ele agora lhe ensinava.
Os elementos do problema constituíam-se na observação dos factos e punham-se
por esta ordem: peixe, vermelho, pintor, sendo o vermelho o nexo entre o peixe
e o quadro através do pintor. O preto formava a insídia do real e abria um
abismo na primitiva fidelidade do pintor. Ao meditar sobre as razões da mudança
exactamente quando assentava na sua fidelidade, o pintor supôs que o peixe, efectuando
um número de mágica, mostrava que existia apenas uma lei abrangendo tanto o
mundo das coisas como o da imaginação. Era a lei da metamorfose. Compreendida
esta espécie de fidelidade, o artista pintou um peixe amarelo.
Polícia
Le
petit monsieur Leclair falhou mais uma vez. Nesse dia (Dezembro, chovia) eu
fora à sede do partido comunista, recomendado pelo pequeno senhor Maurice
Leclair, e recebera uma carta para as forjas de Clabeck. Em Bruxelas o meu
trabalho era muito irregular. Só acidentalmente é que dispunha de algum
dinheiro. Fazia um pouco de tudo: cortava legumes na Sobela, enfardava aparas de papel na Nouvel Maison Vermeiren ou
ajudava Chez Lemaire,
uma friture. Não tinha os documentos em ordem. Não havia quem me desse
trabalho certo e suficientemente prolongado. Maurice pretendia meter-me em
Clabeck, nas forjas (trabalho violento), e que por aí fosse solicitada ao
ministério a carta de trabalho. Contava com a influência de alguém do partido comunista.
Eu divertia-me sobretudo quando pensava que M. Maurice era antigo
colaboracionista e gozava de direitos civis e políticos. A Bélgica era um país
confuso, cómico. Por exemplo: o maior amigo do meu protector, um flamengo que
amava a cerveja forte, pertencera à resistência.
Eu
desejava trabalho, apenas isso. Também um pouco de calor. Pensava em raparigas
com quem pudesse dormir ou ir, nas noites de sábado, aos bares da Chaussée d’Anvers.
Eu tinha um quarto triste, sem aquecimento. Uma das janelas caía sobre a igreja
e o cemitério burguês de Laeken. A outra dava para umas luzes distantes. Sob
uma ponte próxima passavam comboios de mercadorias. Às vezes eu fazia com estes
elementos estrangeiros um lirismo vagabundo e inocente. Também me sentia
entusiasmado com a solidão. Encontrava-me fora dos quadros, vagueava pela
cidade. Era já perigosamente conhecido Au Nord, perto da estação, onde as pu… e os chuis
eram mais que as mães. De vez em quando perdia por ali uma tarde inteira,
arranjava dinheiro para duas cervejas, um pacote de batatas». In
Herberto Helder, Os Passos em Volta, 1994, 2004, Assírio & Alvim, 2009,
ISBN 978-972-370-119-7.
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