(…) O soldado dominava bem aquela
técnica. Já usada noutras situações similares. Não demorou muito tempo até
lograr despir a clériga e colar-se às suas costas. A jovem sentiu o mundo ruir:
tudo aquilo em que acreditara desabava ingloriamente. Não conseguiria
sobreviver a tal ultraje: ou morreria durante o acto ou matar-se-ia de seguida.
Talvez Jesus não tivesse sido correcto para com ela ao dar-lhe tão triste sina,
depois de toda a dedicação que lhe votara. Ainda se lembrou das suas últimas
palavras na cruz: pai, porque me abandonaste? E julgou compreendê-las. A túmida
virilidade do soldado fez-se sentir ainda dentro das suas vestimentas
guerreiras. É, o fim!, pensou, benzendo-se mentalmente, enquanto era coberta pelos
primeiros lampejos do sol minguante que conferiam tonalidades ocres àquele
final de dia. Subitamente, e nada o fazendo prever, todo o corpo do árabe
tombou, desamparado, antes de ter conseguido concretizar os seus intentos predadores
e sem que Ouroana tivesse plena consciência do que estava a acontecer. O
espírito parecia-lhe estar já fora do corpo.
Os seus olhos fitavam as águas
límpidas do Sousa que, indiferentes, corriam dolentemente para o Douro. Porém,
a sua quietude começava a ser perturbada por uma insólita cena: os peixes
fugiam nervosamente de uma mancha vermelha que penetrava no rio, cada vez com
mais intensidade. Ouroana ainda julgou estar a sua pureza a ser absorvida pelas
cristalinas águas. Mas não! A virgindade desflorada nunca seria suficiente para
corar o ribeiro de tanto carmesim. Só então reparou que o guarda, por cima de
si, se encontrava completamente inanimado: a mão já não tapava a sua boca e era
precisamente das costas daquele corpo que jorrava o líquido que tingia o rio e
deixava os peixes em alvoroço. Ele jazia morto e ela permanecia imaculada! Com
dificuldade, conseguiu livrar-se do cadáver do mouro que, de cabeça para baixo,
ocupava o lugar onde antes se encontrara o dela. Nas suas costas, bem cravada,
luzia a adaga que tão eficazmente o atingira. Meu Deus, enviaste o meu anjo
protector!, murmurou, exausta e aliviada, enquanto se recompunha. Não..., não
pode ser!... Parece... Parece ele! Terá sido ele quem me salvou?
Lua
Cheia. Mosteiro de São Salvador de Celanova, Ourense, Galiza. Ano de 976
Múnio Viegas, o governador da
Civitas (espécie de distritos militares criados pelo rei Afonso III das
Astúrias, 866-910, dependentes de um centro fortificado, sede do poder condal,
onde se coordenavam as estratégias de defesa, se cobravam os impostos e se
praticava a justiça em nome do rei) Anégia, acompanhado de outros influentes
nobres galegos e portucalenses tinha-se dirigido ao Mosteiro de Celanova para
solicitar os bons ofícios do seu abade, Rosendo Guterres, na oposição a Ordonho
III, o Rei de Leão. Pretendiam substituí-lo por Bermudo, mais favorável aos
seus interesses. A ilustre delegação de magnates vestidos de feiraches, os
roupões típicos das terras do Minho, exibindo os compridos cabelos divididos ao
meio por uma risca e cortados de forma a deixar uma madeixa cair sobre a testa,
era chefiada por Gonçalo Mendes, Conde-Maior de Portucale. Integravam-na ainda
Gonçalo Nunes, que, à boca pequena, se dizia ter sido o responsável pela morte
do rei Sancho I, e Rodrigo Vasques». In Alberto S. Santos, A Escrava de Córdova,
Porto Editora, 2008, ISBN 978-972-004-166-1.
Cortesia de
PEditora/JDACT